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Juiz do Tribunal de Contas não aceita “a infabilidade do BCE”

“Não aceito a infalibilidade do BCE e de Frankfurt”, frisou o juiz do Tribunal de Contas, relator do relatório da auditoria feita às perdas registadas pelo Novo Banco e imputadas ao Fundo de Resolução.
12 Maio 2021, 18h24

Na Comissão de Orçamento e Finanças (COF), o juiz conselheiro José Manuel Quelhas do Tribunal de Contas (TdC), pronunciou-se sobre a conclusão da auditoria às perdas registadas pelo Novo Banco e imputadas ao Fundo de Resolução. Conclusão essa que diz que “não foi apresentada a demonstração do cálculo do défice de capital do Novo Banco (valor a financiar), nem evidência sobre a sua verificação integral, que o Fundo de Resolução tem o dever de exigir nos termos do Acordo de Capitalização Contingente (CCA)”.

Perante isto, o juiz relator do relatório disse no Parlamento que não aceita o argumento, invocado pelo Banco de Portugal, de que o Novo Banco tem de cumprir um rácio de capital imposto pelo BCE.

“O que disse, quer o Fundo de Resolução, quer o Banco de Portugal, nomeadamente o seu Governador? Dizem que a entidade a quem compete verificar é o BCE, e que a insuficiência de capital decorre de regras europeias, logo, todos estes valores estão mais do que verificados pelo Banco Central Europeu. E eu quando ouvi estas respostas pensei ‘sou católico confio na infalibilidade do Papa mas apenas numa questão de fé, dificilmente confio em algo que me é dito por Frankfurt e pelo Banco Central Europeu. Não basta que o BCE nos diga que o valor a pagar é este e paguem o cheque. O que nós dizemos [TdC] é que ao menos queremos compreender as contas. Mandem-nos os papéis”, referiu o juiz conselheiro do TdC aos deputados, na senda do que já tinha dito que na sua função “é como São Tomé, ver para crer”.

“Não aceito a infalibilidade do BCE e de Frankfurt”, frisou o juiz do Tribunal de Contas, relator do relatório da auditoria feita às perdas registadas pelo Novo Banco e imputadas ao Fundo de Resolução.

O relatório da auditoria refere que “a satisfação da condição mínima de capital, com a consequente determinação do défice de capital, é um requisito necessário para um pagamento ser exigível pelo Novo Banco e realizado pelo Fundo de Resolução (FdR). Assim, o cálculo deste défice tem de ser apropriadamente demonstrado, verificado e validado para garantir que há obrigação de pagamento”.

O relatório do TdC diz que nos termos do CCA, para efeito da demonstração do défice de capital, “é obrigação do Novo Banco entregar mensalmente ao FdR o cálculo detalhado dos rácios de capital regulatório enviado para as entidades reguladoras relevantes; preparar (em 30 dias) e entregar o ficheiro de referência (CCA Reference Schedule), com o défice de capital no final de cada trimestre, ao FdR e ao Agente de Verificação; entregar as contas provisórias e o ficheiro de referência com base nessas contas, incluindo o défice de capital, ao seu auditor e ao FdR ao mesmo tempo; e entregar evidência que demonstre o cumprimento da condição mínima de capital, incluindo o défice de capital, com o pedido de pagamento ao FdR.

Recorde que nos termos da cláusula 3 do Acordo de Capitalização Contingente, o Fundo de Resolução só é chamado a fazer pagamentos ao Novo Banco se for verificada a Condição Mínima de Capital (Minimum Capital Condition) e, nesse caso, pagará o menor dos valores das Perdas Líquidas (CCA Net Losses) e do Défice de Capital (CCA Capital Shortfall), com o limite máximo de 3,89 mil milhões de euros para todos os pagamentos do Fundo de Resolução ao Novo Banco.

“Houve documentos fundamentais que nós não vimos, e a minha questão é se eles não existem, ou não foram considerados relevantes”, disse o juiz José Quelhas.

“Está no contrato que os reportes deviam ser trimestrais”, frisou ainda o juiz conselheiro que remete para o contraditório do Novo Banco, que admite que há cláusulas que são inviáveis e consequentemente não são vinculativas. “Ou seja, o contrato previa, no entender de um dos signatários, que havia cláusulas que eram susceptíveis de incumprimento”, disse o juiz.

No âmbito dos mecanismos de Salvaguarda e Verificação, o Acordo de Capitalização Contingente, segundo o relatório da auditoria do TdC, refere procedimentos de análise e verificação do valor desses ativos e respetiva evolução (valores de referência iniciais e finais, aumentos de exposição, perdas e ganhos por imparidade e por venda, despesas e realizações), e que o Novo Banco deve fazer reportes trimestrais desses valores ao FdR e ao Agente de Verificação, e deve enviar as suas contas ao FdR e considerar a sua revisão pelo Fundo ou por um auditor independente por si nomeado, designadamente no que respeita a perdas por imparidade.

No que respeita aos ativos abrangidos pelo CCA, o Tribunal de Contas destaca no relatório que o acordo contém a sua identificação detalhada e as condições em que as perdas registadas nos mesmos podem ser compensadas. “Mas afinal aqueles ativos não são uma carteira fechada, e podem variar”, disse ainda.

“O contrato prevê, designadamente, que a depreciação dos ativos que tenha excedido a condição mínima de capital possa ainda vir a ser compensada num período posterior, desde que satisfaça a condição mínima de capital nesse período”, avança o relatório do TdC.

A desvalorizações dos ativos cobertos pelo CCA foram 3.616 milhões de euros e as necessidades de capital foram 2.978 milhões. Pelo que o Fundo de Resolução injectou menos 638 milhões do que as desvalorizações dos ativos herdados do BES que ficaram abrangidos pelo CCA.

O Fundo de Resolução, segundo o primeiro-ministro no debate parlamentar, já pagou 588 milhões de euros em juros ao Estado, por conta dos empréstimos feitos.

Contrato com a Comissão Europeia em inglês alvo de crítica do TdC

“Estes contratos [de venda do Novo Banco] são opacos? Não vou entrar em qualificações, mas são contratos cuja leitura necessita de várias leituras. Desde logo, não percebo muito bem como este contrato é redigido em língua inglesa exclusivamente”, disse ainda o mesmo juiz aos deputados na COF que admitiu que os conceitos jurídicos mudam consoante o ordenamento jurídico.

Mariana Mortágua do Bloco subscreveu as dificuldades de leitura do “contrato” da Comissão Europeia e destacou que “o contrato assinado pelo Estado e a Lone Star não prevê a garantia de um rácio de capital CET1 mínimo de 12%. “Esse limite entre este ano, e traduz o nível mínimo de capital [regulatório] mais um buffer e é por essa razão que o Fundo de Resolução pode descontar os dois milhões de euros dos prémios à gestão diferidos relativos ao exercício de 2019, na injeção feita em 2020 [que passou de 1.037 milhões de euros para 1.035 milhões a injeção pelo FdR], sem entrar em incumprimento no rácio de capital. Este buffer significa que o Estado [o FdR] andou a financiar uma sobrecapitalização do Novo Banco”, disse. Segundo a deputada o contrato diz que “até 2021, o FdR assegura o capital exigido pelo BCE mais um buffer“.

O relatório da auditoria do TdC diz na verdade que nos termos contratuais, “a satisfação da condição mínima de capital significa que em 2017, 2018 e 2019, o rácio de capital Tier 1 (ou CET 1) do Novo Banco é inferior ao rácio Tier 1 (ou CET 1) definido pelo supervisor no seu processo de revisão e avaliação para cada período (SREP – Supervisory Review and Evaluation Process), acrescido de uma “almofada” (buffer) de 150 pontos base (parâmetro contratual)”.

Mas a partir de 2020, o rácio CET 1 do Novo Banco tem de ser inferior a 12% para  banco poder chamar capital ao FdR.

Isto é, em 2017, 2018 e 2019 por efeito do Acordo de Capitalização Contingente, o Novo Banco tem de ter um rácio de CET1 mínimo (incluindo o buffer do CCA de 1,5% que acresce ao rácio regulatório) de 12,75%, 12,75% e 13,51% respectivamente.

Recorde-se que as chamadas de capital têm resultado do gap de capital do banco face ao mínimo.

Sobre a nova chamada de capital de 598,3 milhões o juiz disse que o TdC teve acesso aos dados de 2020 “tardiamente”. “Em relação a 2021 os dados não foram apresentados e mesmo nos anos anteriores houve falhas de apresentação”, referindo-se à questão dos rácios de capital regulatórios que o juiz quer perceber em detalhe, não lhe bastando que seja uma regra do BCE.

O relatório da auditoria diz que em 26 de abril de 2021, o BdP enviou uma carta do BCE que confirma, enquanto autoridade de supervisão prudencial, ter a responsabilidade de garantir o cumprimento da legislação da UE relevante, incluindo o cálculo dos rácios de capital. E também confirma ter conhecimento dos 598 milhões de euros de défice de capital do Novo Banco, em 31 de dezembro de 2020, face ao rácio aplicável.

Esta confirmação ilustra que a demonstração do valor a financiar e a evidência da sua verificação integral podem e devem constar dos processos de pagamento instruídos pelo FdR como o Tribunal recomenda.

A auditoria do Tribunal de Contas reporta-se ao processo de financiamento público do Novo Banco pelo Fundo de Resolução (FdR), ao abrigo do Acordo de Capitalização Contingente (CCA) celebrado por ambos em 18 de outubro de 2017, e visa avaliar se esse financiamento salvaguarda o interesse público, o que neste contexto significa concorrer para a estabilidade do sistema financeiro; minimizar o impacto na sustentabilidade das finanças públicas; financiar o valor apropriadamente demonstrado, verificado e validado (sendo as duas primeiras condições finalidades das medidas de resolução nos termos legais aplicáveis).

“O acordo de venda de 2017 vem na sequência de outros financiamentos públicos desde 2014, há financiamento público que se reporta ao momento da resolução”, entende o TdC que fala em “holofotes distribuídos o mais transversal possível”, lembra José Quelhas, referindo-se a responsabilidades políticas.

 

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