Quando a Grécia perdeu o acesso aos mercados financeiros, em 2010, e se espalhou o receio de que mais economias estivessem a caminhar a passos largos para o mesmo precipício, quase toda a gente viu no que estava a acontecer os sintomas agudos de um problema de finanças públicas: o resultado inevitável de anos de desvario orçamental e laxismo na gestão da despesa do Estado. Não é coincidência que ainda hoje, quase sete anos depois de Atenas ter pedido ajuda externa, a maioria dos economistas se refira a este período como a “Crise da dívida soberana da Zona Euro”.
Esta conclusão começou a ser disputada assim que países como a Espanha, que até 2007 tinham sido apresentados como exemplo de rigor orçamental, foram também sugados para o centro do furacão. E tornou-se ainda mais impopular quando economias com dívida pública elevada, como a Bélgica (mais de 100% do PIB), conseguiram passar entre os pingos da chuva, refinanciando a sua dívida sem problemas de maior. Alguns economistas1 juntaram dois mais dois e concluíram que o problema estava noutro lado: nos enormes défices externos que se acumularam ao longo da década anterior na Zona Euro. A dívida pública não parecia ser, em si, um problema – só se tornava um fator de risco quando tinha sido financiada pelo exterior.
Portugal foi uma dessas economias. Se em 1995 tinha relações com o exterior mais ou menos equilibradas, em 2000 o défice externo já estava nuns estratosféricos 9,6% do PIB. E, na década seguinte, pouco mudou. Porquê? Atribuir causalidade é difícil em economia, mas do ponto de vista da contabilidade, não há dúvidas sobre a origem da dívida: as empresas, sobretudo as não financeiras.
A conclusão extrai-se da análise das Contas Nacionais por setor institucional, um quadro estatístico que, para além de ser usado para calcular o PIB, também fornece uma imagem integrada de todas as transações que têm lugar na economia, setor a setor: empresas, setor financeiro, famílias e Estado. Os números não são novos, mas são tão pouco conhecidos que vale a pena recordá-los.
Primeiro, a leitura estática. Em 2008, ano em que o défice externo atingiu o nível mais alto da história recente (11,4% do PIB), eram as empresas que davam o maior contributo para o desequilíbrio: o défice correspondente deste setor era de 10,5% do PIB. O Estado tinha necessidades de financiamento bem mais modestas, na casa dos 3,8% do PIB, que eram parcialmente compensadas pelo excedente das famílias (+1,8% do PIB).
Mas também é possível ler os números ao longo do tempo, e ‘decompor’ o crescimento do défice externo em termos dos contributos relativos de cada setor. E aqui a importância das empresas ganha uma dimensão ainda maior porque, em 1995, quando a economia estava próxima do equilíbrio, as empresas apresentavam também um défice praticamente nulo. Isto é: foi sobretudo o agravamento do saldo das empresas que esteve na base da degradação das contas externas do país. A comparação entre as contas setoriais e as contas agregadas, de resto, fala por si.
Ao longo deste período, as contas dos restantes setores – famílias, Estado e setor bancário – praticamente não registaram alterações relevantes. Claro que houve pequenas oscilações de receitas e gastos, que aqui e ali produziam défices mais altos ou mais baixos; mas, vistas à distância, as contas mostram uma estabilidade impressionante: as famílias tiveram quase sempre excedentes à volta dos 2% do PIB e o Estado gerou défices entre os 3 e 5% do PIB. A ideia de uma orgia de crédito das famílias tem pouco suporte nos dados; e a acusação de despesismo feita ao Estado, apesar de não ser mal fundamentada, tem pouca relevância neste caso, porque o seu défice não era mais alto em 2008 do que em 1995. Foi nas empresas que algo mudou (muito) na antecâmara da adesão ao euro.
Porquê? Dividendos e Investimento
O que é que mudou ao certo? As Contas Nacionais têm informação suficientemente fina para que seja possível destilar melhor o que está na origem da degradação da situação financeira das empresas. E os números disponíveis até 2015 – as contas de 2016 ainda não são públicas – sugerem que há duas grandes explicações.
A primeira é o Investimento. Apesar de a economia portuguesa ter investido pouco nos últimos 15 anos, as sociedades não financeiras parecem não ter sido afetadas por esta tendência. Na verdade, entre 1995 e 2008, o Investimento subiu mais de 3 pontos percentuais (ver tabela). Em 2015, o investimento voltou ao nível em que tinha partido.
A segunda, e mais importante, é a política de distribuição de resultados adotada pelas empresas. Em 1995, os dividendos pagos aos acionistas representavam pouco mais de 3% do PIB, um valor que disparou para cerca de 8% do PIB em 2008. A estratégia inicial, de gerar resultados para investir e distribuir o resto pelos detentores do capital, parece ter mudado radicalmente a partir de 2000. Daí em diante, passou a ser normal recorrer-se à dívida para entregar aos acionistas aquilo que a atividade operacional das empresas já não conseguia produzir.
Porque investiram tanto as empresas quando a economia estava a arrefecer? O que é que as levou a endividar-se para poderem pagar dividendo? Há muitas peças neste puzzle que não encaixam na perfeição – pelo menos, se tudo for analisado à luz da teoria que vê acionistas e gestores como agentes perfeitamente racionais, regidos pelo objetivo único de maximizar o lucro. Mas só respondendo a estas questões será possível compreender o germinar da maior crise financeira por que Portugal passou nas últimas décadas. l
1 Ver “Rebooting the Eurozone: Step 1 – Agreeing a Crisis narrative”, publicado no site de investigação económica Vox, a 20 de novembro de 2015
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