Apesar de haver autores que insistem na tecla que, mais do que uma democracia, os Estados Unidos são uma república (e para uma clara distinção entre os conceitos de república e de democracia teríamos de ser reconduzidos aos nossos antepassados clássicos gregos, máxime a Aristóteles), a verdade é que os últimos dias e as últimas semanas têm demonstrado à saciedade que o sistema político norte-americano, independentemente da forma como o caracterizemos e classifiquemos, estruturado em torno de um edifício de pesos e contrapesos (“checks and balances”), funciona quase na perfeição e cumpre na íntegra a sua função primeira de garantir a legalidade e de evitar a emergência de poderes executivos autoritários.

Se alguma dúvida ainda pudesse existir nesta matéria, o “diálogo” por vezes aceso e acérrimo que tem sido estabelecido entre o poder executivo liderado pelo Presidente Donald Trump e as diferentes instâncias jurisdicionais norte-americanas (estaduais e federais) tem-se encarregado de demonstrar que, por muito grande que seja a tentação autoritária ou autocrática do detentor do poder executivo, há sempre, ao virar da esquina, uma qualquer instância jurisdicional, um qualquer Tribunal de primeira instância ou de recurso, pronto para aferir da legalidade dos atos praticados pela Casa Branca e que, em casos de violação da Constituição ou de outras leis federais, não hesita em anular as medidas administrativas (ordens executivas) provenientes da Sala Oval.

Perante este “regular funcionamento” das instituições do Estado, manda a verdade dizer que a administração Trump se tem conformado e sabido lidar (com mais barulho ou menos barulho, com mais tweets ou menos tweets) com a sucessão de decisões judiciais que lhe têm sido adversas. O contrário, de resto, encerraria extrema gravidade porquanto abriria as portas a uma indesejável crise constitucional cuja saída não se vê que pudesse ser outra que não a abertura de um processo de impeachment ao próprio Presidente recém-eleito.

Trump sabe disso e já deu provas de saber conviver com isso. O último exemplo foi dado com a célebre ordem executiva sobre os imigrantes e as restrições à entrada de cidadãos de sete Estados islâmicos nos Estados Unidos. Derrotado na instância de recurso do Tribunal da Florida, que confirmou a sentença da primeira instância e decretou a ilegalidade da sua primeira ordem executiva, o Presidente norte-americano vociferou, atacou a judicatura, ofendeu os juízes, protestou…. mas acabou por se conformar e por anunciar a substituição da medida administrativa, judicialmente anulada, por outra que cumpra os mesmos objetivos mas que se conforme com a demais legislação em vigor.

Nesta primeira fase da sua presidência, Trump começa a descobrir que a Federação não pode ser gerida como se de uma sua empresa se tratasse; e começa a aperceber-se do primeiro poder que pode questionar ou sindicar o seu absoluto – o poder judicial. Mas não é o único.

Em breve, instalado e a funcionar ordinariamente, o poder legislativo seguramente não deixará de se fazer ouvir e escutar. E aí será a vez de entrar em ação este segundo contrapeso ao poder administrativo – o Congresso da União, com as suas duas Câmaras (Representantes e Senado) onde, apesar do domínio dos Republicanos (mais escasso no Senado do que na Câmara) Trump irá ser obrigado a negociar cada medida legislativa que pretenda fazer aprovar, numa postura de negociação permanente que é todo o contrário daquilo que se lhe conhece e que se lhe adivinha. Basta conhecer um pouco da dinâmica legislativa norte-americana e, inclusivamente, dos insucessos que alguns Presidentes, apesar de marcadamente talhados para boas negociações, conheceram (e Obama é apenas um dos exemplos que poderíamos citar) para se ter a certeza de que, no horizonte presidencial, se anunciam novos e conturbados tempos.

Essa é a esperança de todos quantos olham com preocupação para uma administração Trump não completamente isentada da promiscuidade entre a administração pública e os interesses privados, da desestruturação de uma ordem internacional marcada durante mais de meio século pela liderança norte-americana, de um regresso ao bilateralismo protecionista, de uma prática populista e nacionalista. Quem receia esta nova administração, e os princípios que lhe dão forma, tem no próprio sistema político-constitucional norte-americano a razão da sua esperança.

No fundo, é a melhor homenagem e o melhor tributo que poderemos prestar aos founding fathers da Constituição norte-americana, no exato momento em que passam 230 anos sobre a sua assinatura (1787-2017). A esta distância, superior a dois séculos, é possível reconhecer a sua sapiência, sageza e sabedoria, na estruturação de um sistema político que, apesar de parecer muitas vezes disfuncional para certas coisas – permitindo, por exemplo, que seja eleito Presidente o candidato que obtém menos votos populares que o seu adversário –, acaba por se revelar extraordinariamente eficaz na defesa dos grandes valores democráticos da república e da União.

Em suma, o funcionamento da democracia norte-americana acaba por ser a última esperança de todos quantos se mostram preocupados, dececionados ou receosos do funcionamento da administração Trump.