Uma problemática de justiça de Luandino Vieira
Reactualizar a interpretação da obra “Luaanda” de Luandino Vieira, nos nossos dias, acaba por ser vital para compreender a sociedade angolana mais desigual e injusta no pós-independência. Por isso, consideramos que o livro de Luandino não é meramente uma obra prodigiosa e com um cáracter revolucionário em termos da angolanização da língua portuguesa. Contém, em si, um ensaio sobre a justiça, integrando reflexões sobre a propriedade privada, como um factor essencial ao funcionamento de uma sociedade.
No conto “a estória da galinha e do ovo”, o autor mostra a disputa entre Nga Zefa e Bina pela titularidade ou pela posse do ovo. A personagem Zefa é dona da galinha, mas era Bina, sua vizinha, quem alimentava a galinha com o seu milho, embora com o devido consentimento da dona da galinha. Ambas disputavam um ovo. Porque a galinha, num belo dia, decidiu colocar o ovo no quintal da vizinha, o que fez surgir a maka sobre a titularidade do bem.
Se a estória, numa primeira leitura, pode parecer ingénua e até pitoresca, mais tarde, o autor conduz-nos no sentido de uma interpretação mais densa sobre a problemática da propriedade, porque opta por densificar o problema. O ovo não pode ser dividido em partes iguais.
O autor procura evidenciar que estamos na presença de um problema político, e não apenas social, porque a escolha de uma metodologia para a resolução do tema terá sempre subjacente uma perspectiva ideológica de justiça. Ao atribuir a titularidade do ovo a Zefa, por ser a dona da galinha, estamos a assumir uma visão individual e capitalista de justiça, visto que privilegiamos a titularidade de um bem. Se se decidir, por sua vez, que o ovo deve ser atribuído a Bina, estaremos a colocar em causa o princípio da propriedade como a base da justiça, gerando um risco ou uma insegurança jurídica. Assim, ninguém poderá ter um bem como seu.
Essa estória de Luandino demonstra, efectivamente, que não é possível encontrar uma solução justa se existir um conhecimento prévio do impacto de uma determinada decisão, porquanto o sujeito orientar-se-á, sempre, pela ideia de ganho pessoal e não por um princípio de justiça. Por isso, Rawls, na sua obra “Teoria de justiça”, defendeu o véu de ignorância como a base para a tomada de uma decisão, por ser o preceito formal mais adequado para se alcançar um meio justo de decisão.
Se através de Rawls podemos tentar encontrar um meio formal de tomada de decisão, já não se pode ignorar que a formalização de Rawls raramente acontece. As decisões numa sociedade raramente são tomadas de forma consensual, porquanto a sociedade é contaminada pela subjectividade individual e pelas ideologias. Assim sendo, Luandino procurou mostrar a complexidade da justiça e defender que a propriedade privada gerará disputas intermináveis, para as quais não existe um método de resolução único.
Rawls, antes de Luandino, estava preocupado com o nível de injustiça presente na sociedade. Por isso, o discurso político contemporâneo africano deve encarar a desigualdade social e as injustiças como uma situação gravosa. Sobretudo numa altura em que não se pode utilizar mais a desculpa da colonização ou da guerra civil.
A obra de Luandino Vieira continua a ser urgente e necessária, visto ter antecipado muitos dos problemas associados a injustiças sociais e económicas presentes actualmente em Angola. Para muitos angolanos falta, ainda, encontrar um ovo, enquanto outros acumulam muitos ovos nos seus cestos de milionários. Para todo o sempre, Luandino Vieira, “Luuanda”…
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.