Quando o general de Gaulle fundou a V República francesa, nos idos de 1958, um dos pressupostos subjacente ao sistema político que a Constituição de 4 de outubro desse ano consagrou era o de que o Presidente da República e Chefe de Estado, eleito diretamente pelos cidadãos, seria uma espécie de chefe de fila ou líder de facto do partido ou movimento político que fosse maioritário na Assembleia Nacional de Paris. Enquanto líder de facto dessa maioria, designaria o seu primeiro-ministro, o qual, depois de obtida a confiança presidencial, deveria ser confirmado pelo Parlamento. Esta estreita ligação que se estabelecia entre o Presidente, o seu governo e a Assembleia Nacional eram, por assim dizer, a garantia da estabilidade e do funcionamento do sistema político gaulês. Quando, com Mitterrand, pela primeira vez, a sintonia foi quebrada, assistimos ao nascimento dos primeiros governos de coabitação, caracterizados, basicamente, por uma desconformidade entre as maiorias presidencial e parlamentar – com esta a impor os seus governos ao titular do Eliseu.

As eleições do passado domingo, porém, apesar de terem sido apenas a primeira volta das presidenciais, ao deixarem antever com alto grau de probabilidade a vitória do centrista Emmanuel Macron na segunda volta, podem trazer para o sistema político francês um dado totalmente novo, eventualmente capaz de testar aos limites esse mesmo sistema político-constitucional. Emmanuel Macron, ex-ministro de François Hollande que se demitiu para se poder lançar nesta aventura presidencial, apresta-se a ser Presidente da República de França sem ter atrás de si um partido político, suportado apenas na existência de um movimento cívico “Em Marcha”, que ele próprio constituiu há cerca de um ano, mas que, fruto da sua debilidade, dificilmente poderá evoluir para um partido político a tempo, por exemplo, de disputar as eleições legislativas do próximo mês de junho. Ou seja, pela primeira vez desde a criação da V República, e contrariamente a um dos pressupostos e alicerces desta, a França poderá vir a ter um Presidente da República independente dos partidos políticos com assento na Assembleia Nacional. Mas um Presidente da República, ao mesmo tempo, que não poderá deixar de prestar atenção à composição que vier a ter a Assembleia Nacional, posto que, desde logo, será ela que terá o encargo e a missão de viabilizar o novo primeiro-ministro e o novo governo que vierem a ser escolhidos pelo futuro Presidente da República.

Se, a esta originalidade, acrescentarmos o facto, inegável, de os tradicionais partidos do sistema político francês ou já terem implodido há muito ou se encontrarem em fase de completa implosão ou descredibilização (o PCF há muito que deixou de contar; o PSF sofreu uma derrota histórica com a performance do seu candidato presidencial no passado domingo; os republicanos, antigos gaullistas, encontram-se profundamente divididos e em processo de ajuste de contas interno; só a Frente Nacional parece resistir e firmar-se como o primeiro partido político francês e o que mais deputados obteria se não fosse penalizado por um sistema eleitoral maioritário a duas voltas), estarão reunidas as condições ideais para uma tempestade quase perfeita no centro do sistema político francês: um Presidente sem partido, uma Assembleia de pluripartidária e de partidos enfraquecidos e um governo a ter de depender de ambos.

Ora, a ser este o cenário a sair da segunda volta das presidenciais, dentro de duas semanas, e das legislativas do próximo mês de junho, chegaremos facilmente à conclusão que a situação política em França se aproximará muito mais daquela que caracterizou a IV República do que da que resultou da implantação da V República e que pretendeu terminar com toda a instabilidade que até aí a França conhecia e vivia.

A ser assim, teremos a V República francesa levada ao extremo da sua viabilidade, com um dos princípios básicos em que a mesma assentava a ser posto em causa e a atingir o centro do seu sistema político. Poderá ser o prenúncio de uma alteração que venha a reflectir-se no próprio texto fundador desta V República, inaugurada por De Gaulle com o apoio e o suporte de um referendo popular. Que o mesmo será dizer – poderemos estar na antecâmara de uma reforma constitucional que, em França, funde a VI República, sob os escombros da República gaullista, dos seus partidos tradicionais e do seu próprio sistema político. Acredito que já estivemos mais longe desse novo momento (re)fundador.