O Estado moderno tratou de domesticar a violência através da constituição de uma ordem político-normativa. Assim, os cidadãos que vivem em sociedades pacificadas ou democratas ficam indignados com as imagens de violência difundidas pelas televisões, como as que agora ilustram a situação política no Afeganistão.

Esta cultura de não violência resulta de uma certa perspectiva segundo a qual o poder pode ser exercido sem violência (como defendido, por exemplo, por Hannah Arendt). Mas isto não significa que o poder na sua génese deixou de conter um certo potencial de violência. De forma a conter este potencial de violência surgiu a necessidade de fragmentar o poder em vários órgãos de soberania, cuja finalidade última é fiscalizar e autorizar o uso da violência em situações excepcionais.

Esta estruturação do poder visou, principalmente, mascarar a outra faceta do Leviatã que provoca um certo receio aos cidadãos, principalmente depois de duas guerras mundiais e da experiência dos regimes autoritários do século XX.

Além disso, os cidadãos em regimes democráticos concedem um tipo de poder, de acordo com a formulação de Max Weber, que determina que o “Estado detém o monopólio legítimo da violência”. Enfatizando-se, assim, que a violência deve ser legítima ou justificada, o que não sucede, claramente, com a situação actual dos talibãs no Afeganistão. Neste sentido, os talibãs reclamam para si o monopólio da violência mesmo ilegítima, mas, certamente, mais eficiente e eficaz, superior ao Estado reconhecido internacionalmente que, rapidamente, acabou por ser derrotado pelos talibãs.

Devemos, por conseguinte, reconhecer nas nossas análises e juízos que os talibãs estão a cumprir com o preceito “War-Making and State-Making”, expressão do cientista social Charles Tilly.

No entanto, as televisões vendem, somente, uma perspectiva caricatural dos talibãs, negligenciando que estão a executar, objectivamente e com sucesso, um preceito da modernidade política que determina que um príncipe deve ter armas e não depender dos mercenarismos ou de um exército não regular.

Os talibãs respeitavam com a necessidade lógica de organizar a violência, tal como perspectivado num Estado moderno. Por sua vez, as autoridades oficiais viviam de um empréstimo ou ajuda de um Estado terceiro que operava noutro território. Um Estado cuja sua autoridade soberana era, em certa medida, uma ficção e ilusão política. Deste modo, a retirada dos militares dos EUA mostrou a verdadeira realidade do Estado afegão.

O Estado oficial afegão não era efectivamente uma autoridade política, na medida em que a sua violência não dependia de si. Por sua vez, os talibãs eram um proto-Estado ou uma autoridade política com elevada capacidade coerciva capaz de domesticar os cidadãos e submetê-los a uma ordem de poder. Este facto terá, certamente, elevados custos humanos, principalmente para as mulheres e os cidadãos que não pretendem aceitar tal autoridade política.

Tenho dito que, quando se trata de poder, a nossa moral ou ética são, em si, insuficientes para nos livrar das injustiças praticadas pelo poder político-militar. A morte do Sócrates serve-nos sempre como guia espiritual dos desmandos do poder.

Os talibãs apenas mostraram, mais uma vez, a natureza efectiva do Estado moderno que mantém activa e presente a violência. Talvez o pior erro dos talibãs seja mesmo retirar-nos do sonho ou do véu da ignorância da não-violência do poder. Sem violência ou potencial de violência não há Estado moderno, porquanto a violência é o espírito e a alma de funcionalidade da modernidade política.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.