Confesso que nem sempre prestei atenção ao padrão masculino que utilizamos na linguagem e que só há pouco tempo o questionei verdadeiramente, pelo incentivo de uma amiga, que me contava sobre a dificuldade de explicar a língua portuguesa a quem vem de fora. “Ficam sempre perplexos com esta estória do masculino e do feminino”, diz ela. E dei comigo a perguntar “porque é que tem de ser assim e não pode ser de outra forma qualquer?” ou “foi sempre assim?”. A verdade é que há outras formas e não, não foi sempre assim.

Em Portugal, os estudos sobre o tema não abundam, mas em França sim, e por aí podemos saber a língua francesa não foi sempre dominada pelo género masculino e que mesmo o grego e o latim eram mais inclusivos do que as línguas atuais. “Que aconteceu, então?”. Bem, em França, aconteceu Richelieu, o cardeal que foi o construtor do absolutismo real francês, primeiro-ministro. Foi também o criador da Académie Française, em 1635, com a missão de normalizar e aperfeiçoar a língua francesa. E até que ponto “a institucionalização do género masculino como padrão foi uma decisão consciente?”. Até pode não ter sido essa a ideia, mas quando se discutia o tema das regras linguísticas, naquela altura, tínhamos posições como a do abade Dominique Bouhours, que surge a defender que, na gramática, “quando os dois géneros se encontram, o mais nobre deve prevalecer”, entendendo ser ele o mais nobre o masculino, evidentemente.

Isto era significativo, na altura, porque existiria uma regra conhecida como de “proximidade”, que também se usava em grego e latim, que decide a concordância gramatical, estabelecendo que a concordância e a conjugação são determinadas pelo elemento mais próximo. Um exemplo. Hoje, na frase “o carro, a carrinha e a bicicleta são lindos” usamos o masculino, apesar de dois dos elementos serem femininos. Antes, escreveríamos “o carro, a carrinha e a bicicleta são lindas”, porque a proximidade é que define a concordância, ou seja, neste caso, seria a bicicleta a definir o género, atentando contra o clérigo jesuíta. Aliás, fez escola, que um século depois de Bouhours vemos o gramático Nicolas Beauzée a explicar que “o género masculino é considerado mais nobre do que o feminino por causa da superioridade do homem sobre a fêmea”. Pois bem, é isto que nos tem enquadrado na linguagem e, nem que seja inconscientemente, na forma como olhamos para a realidade.

Como dizia Baudelaire, “manejar sabiamente uma língua é praticar uma espécie de feitiçaria evocatória”. Sejamos então capazes de praticar uma magia inclusiva.