Para além da indignação generalizada, impõe-se compreender as razões profundas da operação militar turca no nordeste da Síria, onde a minoria curda síria pretende criar um governo autónomo, percebido por Ancara como uma ameaça existencial ao Estado turco.

A Turquia nunca aceitará a existência de um Estado curdo sírio contíguo ao seu território. O seu reconhecimento internacional legitimaria a independência dos curdos turcos, e poderia ser utilizado por eles como um “santuário”. É a geoestratégia a falar mais alto. Cerca de 20% da população turca é curda e encontra-se localizada maioritariamente no sudeste da Turquia, uma região vizinha do território sírio onde se concentra a minoria curda síria, sem obstáculos naturais a separá-las.

Foram igualmente motivos de ordem geoestratégica que levaram os EUA a invadir Grenada, a Rússia a anexar a Crimeia, e a China a ter preocupações acrescidas com os “seus mares”. É este o racional que nos permite entender melhor a operação turca e o seu objetivo de construir uma faixa de terra de ninguém, com 30 km de largura, frustrando assim quaisquer tentativas dos “seus curdos” embarcarem numa aventura semelhante à dos seus primos sírios. Não se trata de uma operação para restabelecer o “califado” perdido, inserida numa estratégia expansionista.

Desde os tempos de Obama que o interesse estratégico dos EUA pelo Médio Oriente se limita a impedir a ascensão de uma potência regional hostil, uma vez que se tinham tornado, entretanto, energeticamente autónomos. O retorno estratégico do empenhamento na Síria tinha há muito deixado de compensar.

Os curdos sírios incorreram no erro de acreditar que seriam imprescindíveis para a estratégia americana na região, mesmo sabendo que eram uma segunda escolha, uma vez gorada a dispendiosa tentativa de Obama treinar forças árabes para combater o regime de Assad. A ter de optar entre curdos sírios e Turquia não havia a menor dúvida sobre quem recairia a escolha. Seria ingénuo pensar outra coisa. É o problema daqueles cuja estratégia depende dos interesses das grandes potências. Que o digam os sul-vietnamitas deixados à sorte do vietcongue, ou Najibullah após a partida dos russos.

Muitos dos indignados deviam passar a mão pela consciência. Foi a instigação de uma operação de mudança de regime na Síria em 2011, disfarçada de manifestação pacífica de estudantes que reclamava liberdade, que nos trouxe aqui, com o Iraque em ebulição e uma operação semelhante lançada uns meses antes na Líbia, pelos mesmos patrocinadores, com o alegado ensejo de instaurar democracias liberais nesses países. O resultado desse “fundamentalismo democrático” está à vista.

Convém não esquecer que estes acontecimentos são ainda uma consequência da forma como foi dividido o império otomano no final da Primeira Guerra Mundial. As fronteiras dos Estados iraquiano e sírio modernos são uma construção do Reino Unido e da França que deixou as minorias curdas espalhadas pelo Iraque, Irão, Turquia e Síria, frustrando a ambição dos curdos terem um Estado.

Apesar da indignação generalizada, ninguém vai mexer um dedo para ajudar os curdos. É simplório reduzir a traição o comportamento dos EUA, como se julgamentos éticos em relações internacionais não passassem de uma quimera. É um tiro ao lado.