Nas democracias contemporâneas, caracterizadas por amplas desigualdades estruturais assentes no rendimento, no património, no género, na raça ou na religião, uma forte sociedade civil é condição para representação dos interesses do cidadão comum.

Desde o final da década de 1970 que tendências económicas, sociais e políticas ao nível global têm fragilizado democracias contemporâneas. O processo de europeização favoreceu a concentração das decisões por peritos e tecnocratas, considerada uma forma de decisão preferível à tradicional participação das massas. Mais ainda, o Acto Único Europeu de 1986 levou a que os projectos da então Comunidade Económica Europeia passassem a ser, fundamentalmente, a criação de um mercado comum e a difusão de políticas de desregulação e liberalização económicas.

O efeito destas políticas foi o fortalecimento das associações de elite face às organizações populares. Também a importância crescente das estratégias de marketing e da televisão nas campanhas políticas contribuiu para o declínio das instituições representativas. O uso preferencial destes meios favorece a centralização do poder num círculo estreito, permitindo assim que a comunicação emane de um único centro nacional.

Se antes as mensagens circulavam a partir dos quadros das organizações partidárias, passando necessariamente pela intermediação de activistas com raízes e implantação local, hoje os líderes nacionais ganharam uma autonomia significativa face a estes actores, tendo assim menor interesse em mobilizar membros e simpatizantes através da activação de vínculos com organizações de massas como sindicatos ou cooperativas. Os partidos moveram-se para o centro e privilegiaram estratégias assentes em margens de vitória estreitas, o que levou à desmobilização eleitoral e à despolitização.

Contudo, a sociedade civil portuguesa desde 1974 escapa em boa parte a estas tendências. É uma sociedade civil, que embora em declínio de participação e filiação, ainda tem consideráveis níveis de mobilização. Isto é ainda resultado do ciclo de extrema participação revolucionária que Portugal viveu em 1974-75. Embora na maior parte dos casos as revoluções não conduzam a regimes democráticos, estas favorecem sempre mecanismos que estimulam a participação cívica das massas.

Uma comparação com Espanha, onde a transição foi guiada pelas elites do regime autoritário anterior ilustra este argumento. Nos anos de transição, os dois países foram palco de altos níveis de participação, de uma vaga de criação de associações, do nascimento de movimentos sociais e da massificação do protesto. Foram anos vividos sob o signo de grandes esperanças democráticas, havendo uma partilha disseminada entre a população de projectos concretos de democracia igualitária e participativa.

Contudo, ainda que Portugal seja bastante menos desenvolvido socioeconomicamente do que Espanha, apresentou durante o período democrático uma criação de associações comparativamente superior: uma associação por cada 159 cidadãos em Portugal, e uma associação por cada 156 indivíduos em Espanha. Também a percentagem de população envolvida em associações voluntárias segundo a maioria dos estudos nacionais e internacionais apresenta níveis similares nos anos 2000 (43% e 42%, respectivamente), embora os portugueses sejam consideravelmente mais dedicados a participar efectivamente nas suas associações (58% em Portugal, 49% em Espanha), a fazer mais trabalho voluntário ou contribuir com donativos.

Também a densidade sindical tem sido historicamente muito mais alta em Portugal, assim como o envolvimento em associações desportivas e recreativas, culturais, profissionais e religiosas. Porquê estas diferenças?

No caso espanhol, a transição foi liderada pelas elites e não implicou alterações radicais na estrutura económica. Depois da morte de Franco em 1975, o rei Juan Carlos e Adolfo Suárez, com o apoio de segmentos amplos das facções conservadora e liberal do regime, aprovaram uma lei de reforma política que previa a realização de eleições livres em 1977. Numa fase posterior, os comunistas e socialistas foram chamados a apoiar este processo de democratização. Mas o consenso entre as elites que conduziram a transição era que só seriam realizadas reformas e mudanças políticas, e não transformações socioeconómicas radicais.

Em Portugal, massas populares, semi-organizadas ou actuando espontaneamente, no seguimento do colapso do regime anterior, propõem mudanças que visam transformar, em sentido igualitário, as estruturas sociais. As trajectórias para a democracia através da revolução não se circunscreveram às mudanças nas instituições políticas (sufrágio universal, eleições livres e justas, controlo parlamentar do executivo, primado do direito, direitos das minorias, e liberdades cívicas), mas abarcaram também conflitos pela distribuição de recursos materiais e simbólicos.

Mais, tanto os partidos da esquerda (PS, PCP) como do centro-direita (PSD) participaram neste ciclo e estabeleceram ligações com movimentos de massas. O PSD em particular transformou-se num partido de massas, com uma estrutura disseminada por todo o território e com ligações próximas a várias organizações de base (de jovens e mulheres, por exemplo). Em meados da década de 1970, em articulação com os socialistas, criou uma nova central sindical, a União Geral dos Trabalhadores, algo muito diferente da direita espanhola, que quase não tem ligações à sociedade civil de tipo popular.

Em consequência disto, ainda hoje, por exemplo, ao nível das atitudes da população a pertença a associações em Portugal (especialmente em sindicatos, organizações profissionais e recreativas) é fortemente influenciada pela identificação partidária. Esta especificidade explica assim algumas características do sistema político contemporâneo, como o facto de o sistema de partidos em Portugal ser mais resistente a populismos, mesmo após a maior crise económica da democracia portuguesa. E também pelo facto de a crise, apesar de ter gerado um forte aumento da desigualdade, do desemprego e da pobreza, não ter sido tão severa como noutros países como a Grécia ou mesmo a Espanha.

A mobilização popular, em ligação aos partidos, a partir de 2012 com as manifestações organizadas pela plataforma Que se Lixe a Troika, limitou bastante as políticas de austeridade. Mas também o facto de o governo liderado então por Pedro Passos Coelho ter criado um plano de emergência social baseado nas organizações de assistência social (IPSS), serviu de amortecedor à crise, pois canalizou muita da despesa para a mitigação da pobreza. Este plano foi único entre os países da Europa do Sul e não deixa de ser uma ironia da história, já que é ele próprio descendente directo dos programas de combate à pobreza estabelecidos em Portugal no período pós-revolucionário.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

Tiago Fernandes assina este texto na qualidade de Autor do ensaio “A Sociedade Civil” da Fundação Francisco Manuel dos Santos