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“Advogados não devem fornecer informações ao MP ou às polícias criminais”

A UIA é a mais antiga organização de advogados, fundada em 1927, e representa dois milhões de profissionais à volta do mundo.
  • Cristina Bernardo
26 Novembro 2017, 15h00

Qual a importância desta organização?
A UIA tem dois aspetos fundamentais que traduzem a sua atividade. Um lado ligado aos direitos humanos, numa perspetiva de defesa da profissão de advogado, e o defesa das regras do Estado de Direito. Esta defesa da profissão de advogado não é numa perspetiva protecionista e corporativista da classe, mas numa perspetiva de que o advogado é um ator no acesso ao Direito e é um ator num estado de Direito na administração da Justiça. Para haver administração da justiça os advogados têm que ser livres, independentes e de preferência que haja autorregulação da profissão. Ora tudo isto são ingredientes para proteger o cidadão. Não para proteger o advogado. A UIA neste aspeto de defesa dos direitos humanos intervém em todas as situações, que infelizmente são muitas, à volta do mundo, onde os advogados são colocados na cadeia só pela simples razão de que defendem determinados clientes que não são bem vistos pelos poderes instituidos em alguns países.

A nível pessoal, o que significa assumir a presidência?
Servir como presidente significa o culminar de uma carreira na UIA e de certa forma o concretizar de um sonho, que começou em 1995 com a participação no primeiro Congresso em Londres. Depois disso, participei ativamente e exerci diversos cargos: segundo presidente da Comissão de Investimentos Estrangeiros, presidente da Comissão de Investimentos Estrangeiros, diretor adjunto das Comissões da UIA, diretor das Comissões da UIA e, mais tarde, candidatei-me e fui eleito vice-presidente da UIA em outubro de 2015. Depois, em novembro 2016, presidente eleito e agora, a 30 de outubro de 2017, presidente da UIA. Em 90 anos esta instituição só teve um presidente português, professor Adelino da Palma Carlos, em 1960-62. Entre os principais desafios estão deixar uma marca lusófona na UIA, agregar os advogados à volta do mundo em defesa do Estado de Direito e do princípio da auto-regulação, livre exercício e independência da profissão do advogado.

Não é fácil chegar a presidente da UIA…
Não é fácil porque a advocacia lusófona é pouco representativa a nível internacional. Apesar de em termos númericos representar 20%, a verdade é que a lusofonia não está organizada como estão outras advocacias a nível internacional. E cada um dos países da lusofonia tem alguma tendência para olhar para o seu próprio umbigo e, por isso, não se unem.

Há países onde os advogados são detidos de forma ilegal. Como é que a organização tenta resolver este problema?
De várias formas. São feitas denúncias e a UIA começa por analisar as situações. Depois, amplifica-as a nível internacional, escreve cartas aos governos desses países e, quando tem hipótese de se deslocar, vai às sessões de julgamento desses advogados que são encarcerados e impedidos de exercer a profissão.

Que assuntos jurídicos estão no universo da organização?
A UIA tem comissões e grupos de trabalho em todos os assuntos jurídicos que possa imaginar: Direito Administrativo, fusões e aquisições, Direito Fiscal, Direito Laboral ou lei da biotecnologia. No comité de direção, que se realizou durante o congresso, em Toronto, foi aprovada a criação de um novo grupo de trabalho em startups.

Li um artigo onde falou sobre a escravatura moderna. Porquê este tema?
Porque é um flagelo da sociedade moderna em que vivemos. Alguns podem acreditar que a escravatura acabou com sua abolição no século XIX. Mas ainda está presente em todos os cantos do mundo. A escravatura dos tempos modernos assume variadas formas, desde prostituição forçada ao trabalho forçado, a escravatura por dívidas, tráfico de seres humanos, na descendência, de crianças, casamento forçado e precoce e a remoção forçada de órgãos. Durante a minha presidência da UIA vou chamar à atenção para este flagelo e para o papel dos advogados, que deve ser reforçado. Devem colaborar em campanhas contra a escravidão, dar aconselhamento jurídico às vítimas, assistindo-as nos processos-crime contra os traficantes, bem como sensibilizar o poder legislativo para o aumento das medidas de proteção legal às vítimas. Um dos temas principais do Congresso da UIA a realizar no Porto, entre 30 de outubro e 3 de novembro será a escravatura dos tempos modernos.

Os países dentro da UIA vão dar seguimento a este trabalho?
É um trabalho de sensibilização. Não sei que resultados vou conseguir do ponto de vista prático. Mas acho que isto é um bocadinho aquela filosofia “água mole em pedra dura tanto bate até que fura”. É preciso sensibilizar. Porque a primeira reação das pessoas é ‘escravatura, mas o que é isso?’. É um trabalho de missão. Não sei se vou conseguir alguma coisa, mas vou alertar as pessoas para a importância do flagelo.

Como é que UIA se financia?
É uma associação internacional de Direito privado. Financia-se pura e simplesmente pelas quotas dos seus associados (Ordem dos Advogados e advogados individualmente considerados e escritórios de advogados) e pelas receitas, quer do Congresso, quer de outros eventos que organiza. E, obviamente, quando tem Congressos terá também patrocínios e apoios variados para a organização desses fins.

Também gostaria de deixar uma marca no reforço da lusofonia?
Sim, com certeza. Em termos de cobertura geográfica, os advogados lusófonos estão espalhados por quatro continentes – África, América do Sul, Ásia e Europa. É voz corrente que os advogados lusófonos representam em conjunto mais de 20% dos advogados a nível mundial, mas a nossa influência é muito menor do que aquela que têm os advogados de outras línguas maternas. Ora, tendo em conta aquela percentagem e os 90 anos de existência da UIA, a lusofonia deveria ter tido 18 presidentes da UIA, mas apenas terá agora o segundo presidente português e o quarto lusófono, o que demonstra claramente que a advocacia lusófona é pouco representativa a nível internacional. E então, devemo-nos resignar? Não. Desde já proponho algumas medidas que podem trazer maior representatividade à advocacia lusófona: harmonização do direito dos negócios nos países lusófonos (aproveitando a CPLP como plataforma), tal como acontece com a Organização para a Harmonização em África do Direito dos Negócios (OHADA).

Como olha para a advocacia internacional?
Vejo a advocacia internacional como um sector de atividade, diria eu, com geometria variável com graus diversos de regulamentação (inscrição ou não obrigatória junto das Ordens de Advogados; existência ou não de autorregulação; países onde as sociedades de advogados podem ser detidas por não advogados até países onde isso não é possível e também um mercado muito competitivo.

E para a nacional?
Em Portugal, felizmente, a profissão é independente e autorregulada, mas existem sempre perigos de interferência e eventual descaracterização. Por exemplo, enquanto cidadão e advogado, é fundamental o combate ao branqueamento de capitais, nacional e internacional. Considero indispensável a existência de equilíbrio e o respeito de outros valores fundamentais, como o acesso ao Direito, que gozam de proteção na Constituição da República Portuguesa (CRP). Já se disse que a nova lei de combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo (Lei n.° 83/2017 de 18 de agosto), tal como foi aprovada, “é incompatível com o exercício da profissão por estipular que os próprios advogados são obrigados a prestar informações sobre dados da vida privada dos seus clientes.” Como sabemos, a CRP estabelece que “Todos têm direito, nos termos da lei, à informação e consulta jurídicas, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade.” E acrescenta que o patrocínio forense é um elemento essencial à administração da justiça e nessa medida, garante ao advogado “imunidades necessárias ao exercício do mandato…”

Trata-se de proteger o advogado?
Não se trata de proteger o advogado, mas sim o acesso ao direito dos cidadãos, que deixarão de confiar nos advogados, quando sabem que estes são obrigados a denunciar os seus clientes. Do mesmo modo, também os advogados estão impedidos de exercer livremente o seu mandato, pois podem ser forçados a efetuar as comunicações previstas na lei. Ora, os advogados não devem fornecer informações (via Ordem dos Advogados) ao Ministério Público ou às polícias criminais, mas sim defender os seus clientes, que neles têm que confiar, caso contrário, subvertem-se as regras do Estado de Direito. As polícias e a magistratura do MP investigam, os advogados defendem os seus clientes. Atualmente, confunde-se o advogado com o cliente, diminuiu-se os direitos de defesa dos clientes e para se recolher documentos à vontade nos escritórios dos advogados, acaba-se por constituir os advogados como arguidos. Considero que a lei do branqueamento de capitais necessita de ser alterada rapidamente, para tal, sugiro a criação de um grupo de trabalho entre o Ministério da Justiça e a Ordem dos Advogados. Caso contrário, sugiro que o Senhor Provedor de Justiça suscite a fiscalização sucessiva da constitucionalidade desta lei. A manter-se a atual redação, entendo que o artigo 79.°, n.° 2, da Lei n.° 83/2017 de 18 de agosto pode vir a ser declarado inconstitucional, por violar os 20.° e 208.° da CRP.

De que forma a UIA olha para os grandes eventos de tecnologia ou a inteligência artificial?
A UIA tem comissões e grupos de trabalhos sobre novos temas com implicações jurídicas. Há uns anos fomos a primeira associação a criar um grupo de trabalho sobre “Biotechnology Law”. Agora, acabámos de criar um grupo de trabalho em startups. As implicações jurídicas de grandes temas como tecnologia ou a Inteligência Artificial (IA) constituem o segundo tema principal do Congresso da UIA, onde vamos falar sobre “Legal Chalenges of the Digital Era”. Acho que a IA vai facilitar muito a vida dos advogados e a administração da Justiça porque há uma série de tarefas monótonas, que hoje em dia temos de fazer, que acho que a IA e os programas informáticos nos vão facilitar muito a vida. Agora é impensável, e ninguém aceitará, se for apanhado em excesso de velocidade, ou num grau de alcoolemia que dê prisão, que o levem para tribunal, que o metam numa sala de audiências e que em vez de lá estar o juiz e o delegado do Ministério Público esteja lá um computador e lhe aplique a pena. É impensável. As máquinas nunca irão substituir o homem na administração da Justiça. E os advogados, como parte integrante na administração da Justiça e no bom funcionamento do Estado de Direito, serão de ser sempre advogados de carne e osso.

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