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Agustina Bessa-Luís: Uma autora incómoda que tinha a sabedoria da velha perdiz

É tida como a maior romancista portuguesa de sempre, graças a obras como “A Sibila”, mas foi ao Bambi que recorreu na hora de explicar à filha o que é mais importante: resistir a levantar voo quando se ouvem os tiros. Morreu aos 96 anos, no dia 3 de junho, mas deixara de escrever há 13 anos, levada ao silêncio pela doença.
22 Junho 2019, 20h00

Agustina Bessa-Luís nasceu em Vila Meã, Amarante, a 15 de outubro de 1922, e teve uma carreira de escritora com mais de 50 obras publicadas ao longo de quase 60 anos.

Autora de romances que têm sido considerados “ficções historiográficas”, publicou o primeiro livro, “Mundo Fechado”, em 1949, ainda a tempo de ter a chancela do conceituado Teixeira de Pascoaes, e o último em 2006, intitulado “A Ronda da Noite”, como o quadro do Rembrandt.

Maria Agustina Ferreira Teixeira Bessa morreu na passada segunda-feira, 3 de junho de 2019, mas o seu desaparecimento enquanto escritora aconteceu em 2006, na altura em que sofreu um AVC. Nunca mais escreveu. Desde essa altura retirou-se da vida pública e viveu até ao fim dos seus dias na sua casa no Porto.

São poucos os escritores que participam da natureza do génio, Agustina está entre eles, e como a própria escreveu, “não é à loucura que se deve o génio, mas às condições da lucidez”. Costuma dizer-se que sempre que um homem morre é toda uma enciclopédia que se incendeia. Com a morte de Agustina é mais do que uma enciclopédia que desaparece, é toda a sabedoria da natureza humana, muitas vezes simplificada em aforismos.

“Ser escritora não é caso de ideia fixa, é uma cisma do coração”, disse uma vez. Agustina era isto, lançava uma ideia profunda como quem diz um provérbio. Desvendava o mundo num simples aforismo.
Foi com o romance “A Sibila” [personagem inspirada na sua tia Amélia], publicado em 1954, que se instituiu como escritora em definitivo. Numa entrevista televisiva chegou a confessar que só a partir daí passou a ganhar a vida como escritora. O romance, a que Agustina chamava de fábula, passava-se na casa de família de Agustina, a chamada Casa do Paço.

O seu pai, o empresário Arthur Teixeira de Bessa, era gerente do Casino da Póvoa de Varzim (um dos mais antigos de Portugal) e a sua mãe, Laura Jurado Ferreira, tinha origem espanhola.
A cidade do Porto, para onde foi viver quando tinha dez anos, era uma fascinação para a escritora, que frequentemente transportava o seu universo geográfico para os romances.

Agustina tinha uma distância irónica em relação a tudo, por mais trágico que fosse, e isso era visto por muitos como uma perversidade, mas a própria, na verdade, via-a como uma inocência.

Tinha a aparência de uma simplicidade espontânea e alegre, típica de pessoas realizadas e felizes. Não era uma pessoa aparentemente densa, mas na verdade era vulcânica, tinha uma força subterrânea, não deixava intacto nada em que tocava. Desde logo porque tinha o dom de identificar a verdade e a falsidade das pessoas com um olhar.

Agustina tinha uma inteligência profunda, daquelas que não se vê se não se souber o que é. “A inteligência foi um recurso de povos desgraçados, assim como a ironia partiu de uma necessidade defensiva – ambas qualidades vis, de compensação”, escreveu em “As Fúrias”. “Eu acho que não há inteligência sem coração”, defendeu um dia a escritora. “A inteligência é um dom, é-nos concedida, mas o coração tem que a suportar humildemente, senão é perfeitamente votado às trevas”.

A sua inteligência impulsionou-a para a excelência. “Eu queria ser excelente nalguma coisa. A mediocridade exasperava-me e os pés de barro ainda mais. Pela primeira vez pensei que me devia casar, porque a solteirice me distraía de maiores realidades”, escreveu na sua autobiografia, “O Livro de Agustina”, publicado em 2007.

Casou com Alberto Luís, aos 23 anos, em 1945, depois de ter posto um anúncio no jornal à procura de marido, e que era, na verdade, a manifestação de um desejo literário. Agustina procurava alguém com quem pudesse falar. Isto, ainda se hoje poderia ser mal visto, em 1945 era uma afronta, ainda para mais vindo de uma menina da burguesia do Norte. Até por aqui se via a sua coragem de seguir o que sentia sem se preocupar com os cânones. Esta liberdade é um luxo, só reservado aos independentes de espírito.

A Alma é um vício

Agustina, que um dia escreveu que “a alma é um vício”, foi contemporânea da pintora Maria Helena Vieira da Silva, de quem escreveu uma biografia (“Longos Dias têm 100 Anos”), e da poetisa Sophia de Mello Breyner.

Tida como a maior romancista da língua portuguesa de todos os tempos, nunca fez parte do mainstream da literatura. Era assumidamente anti-feminista, católica e conservadora no seu gosto pelas tradições. Mas nem por isso menos irreverente, rebelde, ou moderna.

“Francamente porque pensam que eu escrevo? Para incomodar o maior número de pessoas com o máximo de inteligência”, dizia a escritora.

Em “A Sibila”, Agustina, com a ironia que a acompanhava, chega a escrever “há raros momentos de clarividência, mesmo nas criaturas mais triviais, e é sempre o sofrimento que os provoca”. “São os espíritos superficiais que mais crêem nos êxitos retumbantes, nas fórmulas fáceis para vencer”, disse, no mesmo livro.

Ruptura com o neo-realismo dos anos 40

Agustina surgiu nos anos 40 com uma obra em ruptura com o, então dominante, neo-realismo (corrente de esquerda) e, nos anos 50, em ruptura com o surrealismo. Mais tarde, a sua proximidade ao PSD (nos anos 80) foi vista pela comunidade literária – que gosta de ver na direita a antítese à cultura – como fatal para a recepção alargada da sua obra literária.

Nos seus romances, Agustina Bessa Luís tem uma concepção sintética e objectiva da realidade social, sem deixar de ser, muitas vezes, satírica. Mestre na descrição de carácteres, a obra de Agustina, tal como disse o primeiro-ministro António Costa na reação à sua morte, é uma imensa tela sobre a condição humana, sobre o que temos de mais misterioso e profundo. Ler um livro da Agustina é um exercício contínuo de sublinhar frases que dão respostas ao nosso íntimo. Como quando fala do papel da memória na nossa existência. “O que melhor fixamos é o que amamos”, referiu um dia.
Dizia Agustina, no seu livro ‘Antes do Degelo’, que as memórias procriam como se fossem pessoas vivas. “Há pequenas impressões finas como um cabelo e que, uma vez desfeitas na nossa mente, não sabemos aonde elas nos podem levar. Hibernam, por assim dizer, nalgum circuito da memória e um dia saltam para fora, como se acabassem de ser recebidas. Só que, por efeito desse período de gestação profunda, alimentada ao calor do sangue e das aquisições da experiência temperada de cálcio e de ferro e de nitratos, elas aparecem já no estado adulto e prontas a procriar. Porque as memórias procriam como se fossem pessoas vivas”.
Dotada de uma sinceridade (que se define como a correspondência do que se diz ao que se sente) desconcertante, Agustina proferiu algumas posições polémicas. Como: “Afonso Henriques era uma criança raquítica, e foi substituído a tempo por um bastardo de Egas Moniz. O cruel D. João II estava fascinado com o magnetismo da violência e, maquiavelicamente, preferiu ser temido a ser amado”, escreve Agustina sobre dois homens consensualmente considerados “grandes portugueses”. Mas há mais. Achava Fernando Pessoa melhor em prosa do que em poesia; não gostava da poesia de Florbela Espanca (a melhor poetisa era Sophia de Mello Breyner). Chegou a desagradar o poeta Manuel Alegre.

Chamou de tola a interpretação que o cineasta Manoel de Oliveira fez de um dos seus livros. Isto não porque gostasse de duelos na vida em sociedade, mas antes porque, para Agustina, “a sinceridade é uma impotência de espírito e a mais deselegante das virtudes.”, uma frase do seu “A Sibila”.

“Gosto das pessoas que são incapazes de deixar de ser o que são”, escreveu um dia a escritora.

A comédia leva a melhor sobre a vida

O que era Agustina se não uma pessoa alegre e de bem com a vida? Era assim que se definia quando lhe perguntavam o que era. Pois o génio vê-se de fora e Agustina estava dentro. Pelo que a percepção de si era a de quem auto-avalia o próprio temperamento.

Para Agustina, “a comédia leva a melhor sobre a vida”. Foi assim que viveu e assim que escreveu. O humor é soberano e Agustina sabia-o. “Eu, por exemplo, só tenho por amigos aqueles que possuem senso de humor. Não importa serem ricos, pobres, doutos ou ignorantes. Interessa o espírito fantástico, o amor da pirueta, e o espírito diligente e capaz de riso. O riso, essa bênção deixada aos homens quando os anjos selaram as portas do paraíso, é o que me liga seriamente às pessoas”, dizia Agustina.

Num documentário transmitido na RTP, Agustina referia: “Costumo dizer, se eu não gostar de mim quem gostará? Sou uma pessoa alegre e isso não é por ser escritora, é um temperamento”. Agustina dizia que essa alegria era o espelho de uma gratidão perante a vida e tudo que a rodeia.

“Gosto do meu humor, isso gosto, e da capacidade que tenho para esclarecer coisas desagradáveis. Eu não tenho propriamente inimigos, se não inimigos infelizes que gostariam de ser amigos”, referia a rir.
A propósito do seu sentido de humor, Pedro Santana Lopes contou publicamente um episódio que, quando era secretário de Estado da Cultura, viveu com a escritora: “Lembro-me de um dia, na China, ao entrar num automóvel para visitar o exército de soldados de terracota em Xian, capital da província de Xanxi, debaixo de um calor húmido insuportável, Agustina terá perguntado ao homem do protocolo se podia ligar o ar-condicionado. Quando o diplomata lhe disse que o aparelho não funcionava, Agustina logo respondeu: “Deve ser a única coisa que não é condicionada na China”.

Gosto implícito pelo belo

Longe de encaixar no estereótipo intelectual, Agustina era coquete. Era frequente nas suas viagens deixar palestras a meio para ir ver lojas. “O sucesso não é nada comparado com um vestido bonito”, disse um dia. “Eu não gosto de modas, só quando me convêm”, acrescentava, por entre risos.

O retrato subterrâneo das pessoas era a imagem de marca dos seus romances. Por exemplo, quando fala da síndrome masculina da hostilidade associada ao narcisismo, muito tempo antes dela ter sido definida noutras ciências. “É quase impossível na natureza humana erradicar a vaidade, o poder aguça essa paixão”, dizia no seu livro “Entre Doidos e Amantes”, que relata a vida de Adelaide Coelho, filha do fundador do “Diário de Notícias”.

Também no mesmo livro é sua a frase intimista, “o que me desilude ofende-me”.

Agustina tinha o gosto pelo belo, ainda que não o exaltasse explicitamente. “A beleza é aquilo que mais abate o fingimento”, escreveu a escritora em “Vale Abraão”. Agustina via na beleza a fonte do poder, com tudo o que de épico e trágico isso implica. A beleza fascina e assusta, atrai o deslumbre e a admiração mas também a vingança.

Como não podia deixar de ser, também falava do amor nos seus romances. “O amor é o invisível no habitual”, dizia. Em “Eugénia e Silvina”, escreveu: “O amor parece ser blasfemo, tais as recusas de que é objeto. Talvez possa agir sobre as estruturas da realidade duma maneira arrasadora. Quem ama arde e extingue-se, não escolhe; pertence ao absoluto e não ao contentamento de comparar, na base das técnicas da argumentação que fazem rolar a terra”.

Agustina Bessa-Luís assina um dos prefácios da edição portuguesa de 1977 do livro de Marguerite Yourcenar “O Golpe de Misericórdia”, onde “encontramos todo o roteiro duma paixão”. “Havia em Sofia um fundo de saúde suficientemente sólido para permitir todas as convalescenças amorosas”, escreveu nesse texto.

Sobre o amor erótico chegou a dizer no seu último romance que “a perfeição não é erótica. É o erro que é erótico e não a beleza”. As frases da Agustina são um assombro. “Ninguém é feliz! Isto ajuda-nos a esquecer muitas ofensas e a entregar a alma menos aos rancores que ao perdão”, lê-se ainda no livro “A Sibila”.
Agustina não tinha medo de quase nada, era extremamente segura de si própria, tinha a certeza de iluminar o que quer que seja. Sem se preocupar com o politicamente correto, disse um dia: “Não há dúvida que a igualdade dos sexos destrói a erótica que envolve todo o comportamento humano”. Chega ainda a descrever o português como um homem que admira mais a Deus do que tem fé nele.

Sobre o romance “Antes do Degelo”, publicado em 2004, a escritora explicou uma vez que “o enigma da culpa é a chave do livro”. Esse romance, inspirado no clássico da literatura “Crime e Castigo”, de Fiódor Dostoievski, diz que “o homem vive da culpa e precisa da culpa para criar. A mulher é aquilo que é, tem esse dom criador, ao ser mãe. O homem usa a culpa como modo de superar esse dom da mulher. É pela culpa que se dão os grandes feitos da humanidade”.

A problemática do Bem também mereceu a atenção de Agustina: “Cinco séculos de moralidade, de pregação do Bem, não deram resultado. A questão é agora gerir o Mal de modo a que ele se torne impraticável”, considerou. Para a escritora, “o Mal é um excitante. Quando perde a natureza de transgressão, de mistério, deixa de ser excitante e de interessar as pessoas”.

“As pessoas que têm mais para ensinar não ensinam nada. A sabedoria não se ensina e, quando se tenta transmitir, é uma paródia do seu verdadeiro conceito”, referia ainda a escritora nesse romance.
A filha, Mónica Baldaque, conta no prefácio do livro “Três Mulheres com a Máscara de Ferro”, que um dia perguntou à mãe, “afinal o que é o principal?”. Agustina respondeu mais tarde. “Aprendi no livro do Bambi a sabedoria da velha perdiz. O principal é resistir a levantar voo quando se ouvem os tiros”.

O silêncio enquanto única represália

Em 2017, perdeu o marido, Alberto Luís, e conta-se que depois do enterro perguntou por ele e, ao aperceber-se de que tinha morrido, ficou em silêncio e nunca mais falou do assunto. “Ficou muito mais metida com ela própria, e muito mais distante”, disse Mónica Baldaque, numa entrevista ao “Sol”.
A forma como a escritora descreve o sofrimento no romance “A Sibila” era já um prenúncio da sua forma de encarar a perda: “Ela não chorava, o silêncio era a sua única represália”.

Autora de uma vasta coleção de obras, Agustina Bessa-Luís chegou a vaticinar o fim da literatura. “A literatura está em vias de extinção. A literatura tem cinco milénios, é tempo de mudar de caminho, tem de dar lugar à ciência”, sentenciou, num documentário da RTP.

A sua obra, maioritariamente inacessível no mercado desde a venda da editora Guimarães à Babel de Paulo Teixeira Pinto, começou a ser republicada em 2017 pela Relógio d’Água.

Além da literatura, a autora pertenceu ao conselho diretivo da Comunidade Europeia de Escritores em 1961 e 1962; foi diretora do jornal “O Primeiro de Janeiro” entre 1986 e 1987; responsável pelo Teatro Nacional D. Maria II entre 1990 e 1993; e membro da Alta Autoridade para a Comunicação Social; além de pertencer às academias de Ciências, Artes e Letras de Paris, da Brasileira de Letras e das Ciências de Lisboa. Como que num coroar da sua carreira, em 2004, foi-lhe concedido o Prémio Camões.

Artigo publicado na edição nº1992, de 7 de junho do Jornal Económico

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