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Angela Merkel: ‘Desistência’ abre condições para falência do projeto europeu

Ainda ninguém conseguiu entender o que terá levado Angela Merkel a anunciar que desistiria da presidência do seu partido, sabendo que isso iria lançar uma espécie de caos na União Europeia. Mas as consequências da decisão para uma Europa a braços com uma crise de identidade profunda.
  • Angela Merkel
17 Novembro 2018, 12h00

Não era novidade para ninguém que a chanceler Angela Merkel não iria voltar a candidatar-se a um quarto mandato à frente do governo alemão os fracos resultados conseguidos pelo seu partido, a CDU, nas eleições de setembro passado e principalmente as enormes dificuldades na formação de um governo estável (para espanto da Comissão Europeia) punham a descoberto que a era Merkel estava a aproximar-se do fim.

O que ninguém esperava, como salientou o comentador e analista político Francisco Seixas da Costa ao Jornal Económico, é que Angela Merkel fosse optar por sinalizar essa saída tanto tempo antes de ela supostamente acontecer (em setembro de 2021), sabendo  como não pode deixar de saber que a sua decisão implica uma série de consequências, nenhuma delas parecendo ser especialmente benéfica tanto para a Alemanha como para a União Europeia.

Os maus resultados nas eleições regionais em Hesse e na Baviera (neste caso por via do fim da maioria absoluta de cinco décadas do partido-irmão CSU) não são suficientes para explicar a decisão. E mesmo que se lhe junte o caso sério de desentendimento entre Merkel e o seu ministro do Interior, Horst Seehofer (outro derrotado na Baviera) a propósito da crise dos refugiados, a explicação ainda é curta, como disse Seixas da Costa.

O primeiro sinal de alarme face à decisão de Angela Merkel não concorrer à liderança do partido no próximo congresso (marcado para dezembro) foi um apelo emanado da Comissão Europeia para que o governo alemão mantivesse a estabilidade do rumo que prossegue desde que tomou posse.

Ora, segundo Seixas da Costa – embaixador com largos conhecimentos dos corredores da política europeia sendo claro que o governo alemão não vai colocar em causa o seu programa, o apelo da Europa tem a ver com a sensação de que alguma coisa está a desmoronar-se. “Há aqui qualquer coisa que tem de ser lida com maior atenção”, refere, para concluir que é no interior do próprio partido que é necessário procurar a explicação para tão inesperado ato.

É que a primeira consequência da decisão de Merkel “é criar uma bicefalia” que não é uma caraterística da vida partidária alemã. A partir do congresso de dezembro, Angela Merkel será a chanceler por via de um partido que será liderado por outra pessoa qualquer – sendo que, para já, não vale a pena os comentadores deterem-se em descobrir quem será essa pessoa, dado que ainda há muita coisa por conhecer.

E isso pode ser o início de um grande problema para o governo alemão – que por certo passará por uma fase em que os ministros não apoiarão todos o mesmo candidato à sucessão, o que pode transformar a vida intragovernamental numa dor de cabeça desnecessária. Neste quadro, a primeira pergunta a colocar é se o governo de Merkel conseguirá sobreviver até setembro de 2021.

A resposta é ‘talvez’, mas Seixas da Costa tem as mais sérias dúvidas. A decisão de Merkel coloca-a numa espécie de responsável pela gestão corrente do país – que, no caso, é o programa de governo, que não será beliscado, mas sem o alento para lançar, porque já não será o seu, o futuro do governo seguinte. Merkel “ficará sujeita a todos os ataques, porque já não vai lutar por mais uma vitória” e isso fará toda a diferença, num lugar onde o pulso de ferro é condição primordial para fazer um bom trabalho. “Nem sequer prestigia o próprio poder a noção de que as pessoas vão embora”.

Desconhecem-se grandes problemas internos de Angela Merkel no partido – mas, para os analistas, haverá sempre um antes e um depois da decisão da chanceler em abrir de forma considerada pouco esclarecida as portas do país aos refugiados que tentavam escapar da guerra na Síria. Para todos os efeitos, o partido vai à luta sem que haja alguém que claramente possa colocar-se na posição de uma espécie de ‘herdeiro natural’, como chegou a ser, mas já não é, o antigo ministro das Finanças, Wolfgang Schäuble.

 

Fragilidade interna

Ou, dito sem rodeios: a saída da chanceler “cria-lhe uma fragilidade em termos da sua autoridade política” que só um caso muito sério no interior do partido pode tê-la levado a ponderar. E essa crise é, também ela, bicéfala: tem repercussões na política interna, mas também metástases na política comum da União Europeia.

Do ponto de vista interno, o mais provável é que a guerra entre as forças políticas em presença aumente de tom. O que seria normal e não particularmente mau se não se desse a confluência num mesmo tempo de alguns fatores que em conjunto podem vir a ser preocupantes. O primeiro é a fragilidade que afeta aquele que esteve para ser o maior partido da oposição mas que acabou por ‘embarcar’ em mais uma grande coligação com a CDU: os social-democratas do SPD. O partido está em regime de crise permanente desde setembro passado, quando não só perdeu as eleições como perdeu também aquele que ambicionava ser o seu carismático líder, Martin Schulz.

As negociações que levaram à conclusão de mais uma grande coligação ao centro do espetro político também não correram bem ao SPD – com Schulz a tentar driblar um lugar ministeriável e a ter de sair sem glória nem encanto pela porta dos fundos. Segundo as sondagens, os social-democratas continuam neste momento a valer a mesma percentagem e votos que valiam em setembro – se é que não valem ainda menos, a ver pelos péssimos resultados que conseguiram tanto na Baviera como em Hesse.

De qualquer modo, a fragilidade do SPD pode ser a garantia de que Merkel conseguirá sobreviver politicamente até setembro de 2021. Se não fosse assim, o partido poderia não resistir à tentação de acabar com a coligação para provocar eleições – na tentativa de passar a ser o partido mais votado.

Ou seja, e como afirmou Francisco Seixas da Costa, o SPD não é neste momento uma alternativa àqueles que, estando desgostosos da história do período recente da CDU, pretendam tentar qualquer coisa de novo.

Ora, qualquer coisa de novo está mesmo ali ao lado: o partido Alternativa para a Alemanha (AfD), uma formação de ultradireita que fez uma entrada fulgurante no Parlamento alemão (foi o terceiro partido mais votado, assegurando 92 lugares) e que se tem mostrado capaz de produzir bons resultados nas eleições regionais entretanto ocorridas. “A CDU é o partido que mais poderá contribuir para o aumento do AfD”, assegura Seixas da Costa principalmente numa altura, recorda, em que o SPD não é alternativa a coisa nenhuma.

Para o AfD poderá ainda contribuir parte substancial do Partido Democrático Liberal (FDP), uma espécie de ‘muleta’ para as maiorias absolutas da formação mais votada (que só tinha relevância quando a CDU ou o SPD, não interessa qual, ficavam próximos da maioria absoluta) e que tem tido uma prestação para esquecer nas mais recentes eleições regionais – mesmo em Hesse, região da qual é oriundo.

Neste quadro, a fragilização da CDU induzida pela decisão de Merkel abre uma enorme janela de oportunidade ao crescimento da ultradireita nacionalista, xenófoba e nazi na Alemanha – o que é, como concordou Seixas da Costa, uma péssima notícia para o projeto europeu. Mas talvez Merkel fique até 2021 dado que os partidos que formam a coligação não têm nenhuma boa razão para acabarem com a coligação que os mantém no poder, por muito que ‘já não se possam ver’ uns aos outros.

 

Fragilidade externa

E é aqui que a política interna alemã faz a ponte com a política interna da União Europeia. Num quadro em que o projeto europeu está a sofrer um dos maiores ataques de sempre, se não mesmo o maior, por parte dos eurocéticos, agora acompanhados de forma clara (e já não camuflada) pelos antieuropeístas, uma eventual viagem do motor da Europa para o lado da extrema-direita – onde já está “a Itália, um dos países fundadores da União Europeia” – pode ser a ‘gota de água’ que fará com que o projeto comum sofra um embate de que poderá não conseguir levantar-se.

Mas este é um sintoma a prazo. Para já, a fragilidade de Merkel consubstanciar-se-á no facto de a chanceler perder a voz de comando que tinha na Europa. “Todos vão preocupar-se em saber quem será a figura que vai substituir Merkel. E isso irá introduzir algum ruído na política de alianças com a Alemanha. Os países vão começar a jogar nas apostas de futuro. Para a voz alemã na Europa e no mundo, isso não é propriamente uma boa notícia”, refere o analista político.

Neste quadro, qual é o futuro do projeto europeu? “Essa é a pergunta do milhão de euros”, ironiza Seixas da Costa. “Não sabemos qual vai ser o futuro da Europa tendo nomeadamente em conta um fator que não diria novo, mas que é novo na dimensão da sua expressão, que é o surgimento a nível de governos e de parlamentos de tendências disruptivas relativamente àquilo que é o padrão de valores e princípios da Europa”.

Para todos os efeitos, esta decisão de Merkel vai servir de alento a essas “tendências disruptivas”, que já fizeram saber que querem ganhar uma força até agora nunca vista no Parlamento Europeu que tem eleições marcadas para maio do próximo ano. E aqui repete-se a mesma tentação que existe na Alemanha: a transferência de votos dos partidos da direita para os que assumem uma postura eurocética ou antieuropeísta, numa altura em que estas formações acabam de ‘sair do armário’ e lutam com crescente fervor pela alteração radical dos pressupostos da União Europeia.

“Setores de uma direita democrática tradicional pode sentir o apelo a funcionar sobre um registo radical. Há uma deslocação do eleitorado que tradicionalmente votava de uma forma moderada para formas institucionais de expressão política que ultrapassam os referentes democráticos. E isso é muito complexo e abre a questão de saber-se se os partidos democráticos tradicionais são capazes de voltar a chamar esse eleitorado à luz de uma agenda mobilizadora”, refere Seixas da Costa.

A resposta a esta inquietação do embaixador está nos exemplos mais recentes dos partidos da direita dura tradicional – como o Les Republicains em França (o partido de Sarkozy) ou mesmo a CSU na Alemanha – que, em vez de tentar chamar o eleitorado para o reformismo que os carateriza, opta por aproximar o seu discurso à extrema-direita “nomeadamente em matérias como os refugiados, a imigração e o terrorismo”.

“Os partidos do centro, sejam mais à direita ou mais ao centro, não têm conseguido encontrar um registo suficientemente convincente para um eleitorado que está assustado”, enfatiza – e esse é o grande trunfo para os extremismos de direita nas eleições para o Parlamento Europeu do próximo ano.

 

Os outros poderes

Como sempre, nem todos os analistas estão antecipadamente saudosos dos tempos em que Merkel mandava na Europa. Dizem os detratores da chanceler que a fragilização autoinduzida do seu poder vai parar com aquilo a que chamam a ‘germanização’ da Europa. Essa germanização – que até sofreu um rude golpe depois de Mário Centeno, o ministro português das Finanças, ter sido cooptado para dirigir a Zona Euro – tinha a prazo dois objetivos que Berlim nunca se deu ao trabalho de renegar: colocar um alemão na liderança do Parlamento Europeu e outro na governação do Banco Central Europeu.

Sendo certo que não é suposto que isso venha a suceder – duas pessoas com a mesma nacionalidade a liderar os dois organismos – e segundo os analistas, Merkel ‘escolheu’ liderar a Comissão Europeia cujo mandato acaba para o ano, sendo já conhecido que Jean-Claude Juncker vai reformar-se.

Jens Weidmann, presidente do Bundesbank, o banco central alemão, chegou a ser apontado como o principal candidato à sucessão de Draghi, em novembro de 2019, mas, segundo essas notícias nunca desmentidas, e face à evidência de que a França e a Itália não acompanhariam a candidatura, Merkel teria preferido a Comissão Europeia.

A decisão teve o benefício de ‘aquecer’ a corrida à liderança do BCE, que já conta com vários candidatos: de França, a diretora-geral do FMI, Christine Lagarde, o líder do Banco de França, François Villeroy, e o administrador executivo do BCE, Benoît Coueré; da Holanda, Klaas Knot, líder do banco central daquele país; da Finlândia, Erkki Liikanen, ex-governador do banco central, e Ollie Rehn, atual governador da instituição e ex-comissário europeu para os Assuntos Económicos.

Para a Comissão Europeia, Merkel também já tinha um candidato: Manfred Weber, que preside ao maior grupo político no Parlamento Europeu e já assumiu que quer ser o próximo presidente daquele organismo, em substituição de Juncker. O eslovaco Maros Sefcovic (vice-presidente da Comissão para a União Energética) poderia ser o seu mais sério concorrente do lado do centro-esquerda à liderança da Comissão. Ou Frans Timmermans, também vice-presidente da Comissão Europeia desde 2014 e ex-ministro dos Negócios Estrangeiros holandês, socialista.

O Conselho Europeu também mudará de mãos em 2019 (juntamente com o Parlamento, a Comissão e o BCE), mas Berlim parece considerar que o verdadeiro centro do poder comum está na Comissão e não no lugar que atualmente é ocupado por Donald Tusk.

 

O Reino Unido ainda mexe

Ora, dizem os analistas internacionais, os restantes membros da União Europeia com algum poder – leia-se França, Itália e Espanha – podem pretender aproveitar a fragilidade de Merkel para colocar um travão à germanização e mesmo revertê-la em favor de outras geografias. Emmanuel Macron, o presidente francês, pode ser o mais aguerrido nessa frente e a verdade é que tem poucos concorrentes ao seu lado: o primeiro-ministro italiano, Giuseppe Conte, não é quem verdadeiramente controla a política interna – esse papel está cada vez mais nas mãos do ‘seu’ ministro do Interior, Matteo Salvini – e por isso não tem uma agenda pessoal em termos europeus.

Já o chefe do governo espanhol, o socialista Pedro Sánchez, podia ser um sério candidato a assumir uma espécie de príncipe da esquerda moderada (lugar já ocupado por Tony Blair antes de abraçar o liberalismo puro e duro e pelo italiano Matteo Renzi antes de dar cabo da sua própria carreira por causa de um referendo sobre uma matéria com pouco interesse). Mas Sánchez está demasiado envolvido em questões internas, e o mais certo é que, a breve prazo, venha a ter de enfrentar eleições e por isso a sua posição não lhe permite ‘veleidades’ europeias – por muito que tenha tentado dar ‘um ar da sua graça’ na questão dos refugiados.

Ora, Macron tem do seu lado um trunfo que pode ser precioso: é, para todos os efeitos, um dos poucos líderes europeus – e o único com peso – que tem tentado manter em aberto as vias de diálogo com a primeira-ministra britânica Theresa May, sendo, por outro lado, a melhor hipótese do Reino Unido para conseguir manter uma (muito) pequena réstia de esperança num ‘Brexit’ com um acordo honroso para as duas partes em evidente litígio.

Se o presidente francês engendrar um qualquer milagre que permita esse acordo, a sua posição como líder do projeto europeu sairá tremendamente reforçada e, num quadro em que Merkel deixa de ser a sua mais direta e aguerrida concorrente, isso pode fazer toda a diferença.

Até porque, por outro lado, Emmanuel Macron tem sabido sinalizar junto de outros líderes mundiais a sua vontade de ser uma voz autónoma na liderança da União Europeia. Os contactos internacionais que já empreendeu vão desde o presidente chinês até ao primeiro-ministro russo – e a França está numa posição de relevo em palcos tão diversos como o grupo que tem em mãos uma solução para a Síria, o Irão, Israel e até a Líbia. Falha-lhe talvez a Península Arábica, a Turquia e, claro, os Estados Unidos – onde Donald Trump não parece tê-lo em grande consideração.

Macron tem também mostrado trabalho em termos do que é a capacidade de reter as tentações da ultradireita nas políticas internas: não só vencer a antiga Frente Nacional de Marine Le Pen, como o fez sem o recurso à assunção de um discurso alinhado com a ultradireita que é afinal, como enfatizou Seixas da Costa, o que estão a fazer Les Republicains de Sarkozy.

E depois há sempre a bomba atómica ou, dito de outra forma, há sempre o facto de a França ser um membro permanente do conselho de segurança da ONU, onde dentro de pouco tempo passará a ser o único representante da União Europeia. E isso, como sabem todos os analistas, conta mais que aquilo que possa parecer à primeira vista e poderá dar à voz francesa um quadro de influência que nenhum outro país europeu pode almejar.

E esse parece ser o cenário mais razoável, ou o menos penalizador, para o projeto comum europeu. Porque, como dizia Seixas da Costa, o facto de Angela Merkel ter anunciado que não vai concorrer à liderança do partido tem como principal consequência o escancarar de uma porta – que já estava semiaberta – a projetos alternativos que deitarão por terra a União Europeia na forma como foi pensada em 1957 e evoluiu até aos nossos dias.

As alterações que uma maioria populista poderia querer introduzir no ambiente comum teriam desde logo como consequência – e fossem elas quais fossem a desestabilização da economia, numa altura em que o crescimento sustentado continua a ser uma miragem. Os valores do crescimento tanto da União Europeia como da Zona Euro para o ano em curso – revistos permanentemente em baixa – mostram bem que as fragilidades decorrentes da crise de 2008 ainda estão longe de suportarem uma qualquer outra avalanche que se cruze no caminho comum.

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