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Angola em casa sem o luxo de uma “despensa recheada”

A queda a pique do preço do petróleo vai aprofundar a recessão e forçar um pedido de reestruturação ou perdão da dívida. A preocupação mais urgente, contudo, é o impacto do estado de emergência na população que depende da economia informal.
4 Abril 2020, 12h00

A nuvem da crise global que vai ser provocada pelo combate contra a Covid-19 chegou para ensombrar ainda mais as perspetivas da economia angolana.

Em dissonância com as previsões de muitos analistas, o Governo tinha inscrito no Orçamento Geral do Estado (OGE) para 2020 o fim da recessão que castiga o país desde 2015, projetando uma expansão de 1,8% .

Na passada sexta-feira, a ministra das Finanças de Angola, Vera Daves de Sousa, teve de anunciar a revisão do cenário macroeconómico, fruto da crise gémea da Covid-19 e do choque petrolífero. Admitiu que as previsões macroeconómicas “assinalam uma recessão em 2020 em torno de 1,21%, como resultado da degradação do quadro económico envolvente”.

Os analistas continuam a ver essa projeção como pouco realista e dizem que a situação da economia angolana é muito frágil.

“Todas as previsões de crescimento do PIB neste momento são puros exercícios de adivinhação, no contexto africano, porque não sabemos qual a duração da situação de crise global – e, no caso angolano, concretamente se o preço do Brent se vai manter na casa dos 20 dólares, se vai descer abaixo desse nível (como apontam algumas previsões), ou até recuperar”, disse Paulo Guilherme, analista do Africa Monitor, uma publicação de análise estratégica, ao JE.

Recorda que a situação angolana já era “bastante débil” – endividamento elevado, quebra de produção petrolífera, desvalorização do kwanza – e que será preciso cortar muito mais despesa e encontrar fontes adicionais de receitas – “sendo que já se percebeu pela falhada abordagem do Ministério das Finanças aos mercados, para tentar emitir 3.000 milhões de dólares de eurobonds, que as opções para tapar o ‘buraco orçamental’ se vão resumir a apoio multilateral (eventualmente reforço do financiamento do FMI) e saque do Fundo Soberano”.

Esta semana a Capital Economics lembrou que a referência histórica que normalmente precede os defaults são os 1000 pontos base (10%). “Angola já ultrapassou este valor há algum tempo”, disse à Lusa.

Outra consultora, a Oxford Economics, anunciou que vai rever “drasticamente em baixa” as previsões económicas, antecipando para este ano uma recessão superior a 2% e um desequilíbrio negativo na balança orçamental e corrente.

A agência de notação financeira Moody’s colocou Angola como um dos três países emergentes endividados que estão mais vulneráveis à turbulência nos mercados financeiros devido à crise económica criada pela pandemia da Covid-19.

Para Paulo Guilherme, o serviço da dívida angolana representa mais de metade das verbas do OGE, portanto terá “forçosamente” de haver reestruturação ou perdão de dívida, sendo que alguns países já estão a abrir caminho nesse sentido, caso da Zâmbia.

Sublinhou que os investimentos previstos para arrancar este ano na indústria petrolífera angolana, que num cenário otimista permitiriam estancar a descida de produção dos últimos anos (para níveis mais próximos de um milhão de barris por dia) serão inevitavelmente suspensos ou cancelados.

Explicou que, dessa forma, a crise de 2020 terá um impacto no crescimento económico muito para além deste ano em Angola, ainda dependente da indústria petrolífera.

“Em vez de ser o ano da viragem para cima, como previa o Governo, este poderá ser o ano da viragem para baixo”, disse, recordando que as próximas eleições presidenciais são já daqui a dois anos.

Preços de bens alimentares deverão subir

O analista do Africa Monitor alertou, no entanto, que o tema “mais preocupante e mais urgente” é o impacto do estado de emergência, decretado pelo presidente João Lourenço a 26 de março, na vida da maioria da população.

Paulo Guilherme sublinhou que essa maioria vive na pobreza e na informalidade, vendendo nas ruas ou nos mercados, fazendo biscates.

“Devido às restrições de circulação, não só estes muitos milhares de pequenos comerciantes perdem clientela, como estão a ver restringido o número de horas que podem vender na rua”, referiu, acrescentando que é de esperar que os preços de bens alimentares venham a subir, pelo que poderão ter dificuldades em alimentar as suas famílias.

“A maioria da população não tem, obviamente, condições de ficar em casa, pois não dispõe de um salário ou de uma despensa recheada, e tenho dúvidas de que o governo angolano tenha acautelado suficientemente bem esta situação”, alertou o analista.

Explicou ainda que a situação angolana e da África subsaariana tem algumas particularidades em relação à europeia. Como o número de testes é reduzido e a infeção da Covid-19 é em muitos casos assintomática, o número de infetados confirmados tem-se mantido muito baixo nas estatísticas oficiais.

“Creio que assim continuará nas próximas semanas. Os países africanos que têm mais casos, como o Senegal ou a Argélia, são aqueles que têm feito mais testes e têm melhores serviços de saúde”, referiu.

“Esta baixa incidência (artificial), associada ao impacto económico e financeiro e à pressão social, vai levar o Governo a declarar rapidamente vitória contra a Covid-19 e levantar as restrições impostas, antes até do que na Europa ou EUA”, concluiu Paulo Guilherme.

Artigo publicado no Jornal Económico de 03-04-2020. Para ler a edição completa, aceda aqui ao JE Leitor

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