Gosto de ver, na RTP Memória, os programas sobre o Portugal que fomos tendo. Muitos deles, sobretudo aqueles que evocam os serviços noticiosos pré-25 de Abril de 1974, remetem-me para uma realidade que vivi, para um tempo em que bastava fazer meia dúzia de quilómetros para fora de Lisboa ou do Porto para sermos confrontados com o chamado país real. Lembro-me bem, ainda, de como, nas viagens aéreas, instalado junto a uma janela, sabia sempre quando cruzava a fronteira. Visto de cima e de longe, o ordenamento do território não permitia erros. E constatava, também, que quando voava em direção aos países do pacto de Varsóvia, voltava a ter a mesma sensação: havia outras ibérias lá em baixo.

Comprovava-o a cada aterragem. Nas consequências concretas, descender de uma ditadura de direita ou de esquerda valia o mesmo, na paisagem e nas pessoas. Sabia, por isso, que a Europa que invejava era pequena. De Norte, começava nas ilhas britânicas e acabava na ponta da bota italiana. De Este para Oeste juntava o Benelux ao centro franco-germânico e o oásis só se voltava a descobrir por cima da Escandinávia.

A minha convicção de europeísta vem desse tempo em que certifiquei o que aprendera nos livros. A História batia certo para quem sabia descontar os ardores políticos militantes.

O tempo passou. A Europa, pagando-nos autoestradas, rotundas e pontes criou-nos a ilusão do desenvolvimento perfeito. O país real começou a parecer cada vez mais longe e alguns portugueses, os das cidades, entusiasmados, talvez tenham aderido à sensação da integração plena, estendida à responsabilidade civil e à serena omnipresença do Estado. Alguns feitos, como o SNS, fizeram por merecer esta ilusão catalisada pelo cavaquismo e que desagua na atual dívida externa, a pública e a privada.

Creio que só agora começamos a perceber verdadeiramente que o dinheiro derramado sobre as obras teve um efeito secundário perverso sobre as pessoas. Institucionalizou a corrupção nos partidos e daí ela seguiu para a administração, central e local. Por isso, ao fado da miséria da gente triste, das estradas que eram caminhos, da lama por todo o lado no inverno, do país abandonado pelas televisões e agora recuperado pela CMTV, sucederam outras tragédias em sessões contínuas, na economia e na vida.

O roubo dos bancos por dentro, o tráfico de influências permanente, a utilização das empresas públicas pelos amigos, a corrupção generalizada têm muito a ver com a queda de pontes, o desmoronamento de estradas, os incêndios descontrolados e outras calamidades de regularidade chocante.

Aterro este texto em Borba para dizer que não sabia daquela estrada. Nunca lá passei. Mas havia gente que passava. E não deveria ser preciso vê-la a partir de cima para ter a noção do perigo. Este novo episódio do Estado desaparecido em combate faz parte de um país que, afinal, não mudou o suficiente.

Sou realista: os acidentes sempre existiram e existirão. Mas isto em Borba não foi um acidente, foi uma estupidez. Dolorosa estupidez. Criminosa irresponsabilidade. De quem não sei. Se calhar nunca saberemos. A não ser que o Estado, que pagamos, e as pessoas que o servem, que elegemos, e agora de novo se afadigam em declarações estéreis e em inquéritos e investigações de rotina, falham vezes demasiadas. Isso está provado. E diz muito da sociedade que ainda somos.