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Carminho: Despir o fado, procurar a essência

Carminho não teve uma epifania. Há cerca de 20 anos que canta em casas de fado, em Lisboa, e há dez que grava discos. No seu novo álbum, “Maria”, despe o fado, questiona, ri e até toca guitarra elétrica. Carminho continua a ser Carminho, mas revela toda a fadista que há em si. Ainda bem, pois ficamos todos a ganhar.
25 Dezembro 2018, 19h00

Teremos maneira de saber se sabemos alguma coisa? O cético defende que não. Mas isso não vem ao caso quando a mulher que está diante de nós simplesmente deitou por terra a dúvida cartesiana dizendo “canto, logo existo”. A mulher que ao quinto álbum, quarto de originais, assumiu a produção e a composição da maior parte dos temas que o integram. A mulher que decidiu correr riscos e fazer um disco íntimo. A mulher que chamou à capa o seu primeiro nome: Maria.

Maria do Carmo de Carvalho Rebelo de Andrade despiu o nome e despiu o fado. Despojou-o para o sentir melhor. Para recuperar aquele ambiente que só se respira nas casas de fado, que não vai para o estúdio só porque sim. Carminho – como é conhecida no meio fadista e entre o público – não teve uma epifania. Há cerca de 20 anos que canta em casas de fado, em Lisboa, e há dez que grava discos. Deu corpo a Fado, Alma e Canto, e aventurou-se pelo universo de Tom Jobim sem deixar de ser ela própria. No fundo, foi-nos cantando quem é, foi trilhando o seu caminho.

No novo álbum, Maria, acabado de lançar, mergulhou no seu pensamento primordial e subtraiu ao fado aquilo que, para si, não é necessário para chegar ao essencial. Carminho continua a ser Carminho, mas transforma-se pelas canções e revela-nos toda a fadista que há em si. Ainda bem, pois ficamos todos a ganhar.

Este álbum é o mais pessoal que fez até agora e aquele em que assumiu mais riscos. No tema Estrela, assina a letra e a música, mas o aspeto mais curioso é o facto de tocar guitarra elétrica. É uma relação de longa data ou conheceram-se recentemente?

[sorriso] Sempre tive imensa pena de não me conseguir acompanhar com nenhum instrumento. Eu sei tocar piano e guitarra para compor. Ou seja, sei as notas, não sei acompanhar-me do princípio ao fim, não sei animar uma sala sozinha. Não sou aquela pessoa que pega numa guitarra e anima a casa toda! [risos] Não me refiro a dar alguma coisa de novo ou pertinente ao instrumento. Refiro-me a começar e a acabar uma canção do princípio ao fim e ela resultar… Mas este processo de estúdio foi muito bonito, no sentido em que houve uma procura muito grande pelo momento.

‘Momento’ no sentido de onde venho, para onde vou, o que quero eu do fado?

Este disco nasce deste pensamento: o que era o fado para mim? Quando é que eu comecei a perceber o fado? O que é que eu aprendi com o fado? E uma das coisas mais importantes é a experiência emocional. E a linguagem, que passa por um ambiente, por uma voz, por contar uma história. E isso passa também pelo assumir de um erro – porque um momento é um momento, isto é, não se repete mas também não se pode corrigir. Este disco foi feito live in studio e houve um dia em que peguei na guitarra elétrica pela primeira vez e senti que é preciso muito menos força para tocar – eu tenho uma guitarra clássica… De repente percebi que, de alguma maneira, aquela guitarra se tinha apaixonado por mim e me estava a ensinar a tocar! [risos] Pelo menos foi assim que eu interpretei. Estava dentro do estúdio e os músicos tinham feito uma pausa para tomar café… Ainda estava a escolher as notas e o técnico pôs a gravar e depois pôs-me a ouvir e disse: “devias ser tu a tocar”. Foi uma feliz coincidência e trouxe-me um prazer acrescido! Eu fiz aquela canção a tocar guitarra, por isso este disco não foi só pôr os músicos na fragilidade, mas eu também me pus a mim na fragilidade do momento. Mais. Houve a hipótese de não ficar tudo perfeito. Foi honesto, foi sincero. Depois já não fazia sentido aquela canção tão íntima e profunda, que era minha, ser tocada por outra pessoa quando eu a sabia tocar. [sorriso]

O despojamento fazia sentido…

Simplicidade acima de tudo. Aquilo parecia quase uma demo, uma amostragem daquilo que era a canção para outra pessoa. E como ficou sentido, com o coração, não valia a pena deitar fora.

Mas tal como outros géneros musicais, também o fado se encontrou com outros estilos e linguagens para depois regressar à sua génese e redescobrir-se. Digamos que são ciclos…

E passa também pela minha história no fado. Eu cresci numa altura em que o fado não era nada cool. Era uma coisa muito chata! Os meus colegas – e estou a falar na adolescência e mesmo na pré-adolescência – chegavam a marginalizar quem não era cool. Não havia essa cultura em casa, não se ouvia fado. Por isso eu sentia-me segura nas casas de fado. Sentia-me acompanhada e tinha os meus pais, mas vivia num mundo de adultos. Era um refúgio. E eu cresci nas casas de fado e assisti aos vários ciclos do fado: desde a altura em que não tinha público, em que houve um certo divórcio, até um crescendo que vai dar a esta vontade de “somar”, digamos assim, a outros géneros, de fazer outras experiências… talvez para fazer as pazes com o próprio fado [sorriso]. O fado é uma língua viva e a tendência foi somar, mas eu escolhi subtrair! E não tenho visto isso acontecer. A tendência tem sido somar.

É importante voltar ao ambiente intimista da casa de fado, a uma certa intimidade?

Sim, volto muito. É essencial voltar à origem. Não é fácil, mas como tenho um irmão que canta numa casa de fados vou voltando, e é essa energia que diz que o fado é fado.

Recordo palavras que usou em tempos para elogiar os seus pais, a fadista Teresa Siqueira e o “pai que não cantava” mas lhe ensinou muitas coisas. “Foram capazes de atitudes de coragem e desprendimento” por terem largado tudo para se instalarem no Algarve e depois regressarem a Lisboa para a sua mãe realizar um sonho.

O meu pai é engenheiro civil e a minha mãe é cantora de fado, e a minha família foi para o Algarve por causa do meu pai. Mas lá não há casas de fado e a minha mãe começou a fazer ‘noites de fado’ em casa, e foi assim que comecei a ouvir fado desde pequenina. Há fotografias minhas de pijama e tudo. Uma criança de dois, três anos, normalmente não tem essa possibilidade, porque não vai a casas de fado com essa idade. [sorriso] Mas eu tive esse privilégio e, passado uns anos, o meu pai – que é engenheiro, que não canta e diz que o contributo que ele deu para nós todos cantarmos muito bem foi ter ficado em silêncio [sorriso] – largou tudo, deixou o emprego, e nós a escola, para virmos para Lisboa ajudar a minha mãe a cumprir o sonho da vida dela, que era abrir uma casa de fados em Lisboa!

Os seus pais foram um exemplo inspirador, deixaram-na ‘voar’…

Sim, isso inspirou-me muito. E ensinou-me a ser livre e a saber que podia ser quem eu quisesse. Aliás, fui tirar um curso de marketing e publicidade por achar que tinha de ter uma profissão. Cantava por gosto e até dizia ao meu pai que para mim cantar era tão fácil que não podia fazer daquilo profissão! [risos] E ele disse-me: “não só é um privilégio poderes fazer aquilo que gostas como deves agarrar aquilo que gostas. Há muita gente que é obrigada a fazer o que não gosta. Mas não penses que é assim tão fácil e que não dá trabalho. Vai dar muito trabalho”.

O tema A Mulher Vento fala em “princesa prometida, por carma está contida… nasceu para cantar”. Tem o seu quê de biográfico?

O tema nasceu num dia em que eu estava no camarim com a Marisa Monte, em Serralves, e partiu de uma coisa simples, de uma imagem. A forma como fiz essa imagem viajar já não tem nada a ver com a Marisa, Serralves ou o vento. [sorriso] Pensei numa mulher que tinha a voz do vento, que cantava o vento. Ou melhor, pensei que o vento é um elemento primordial na engrenagem que é o mundo. Se retirares essa peça, o mundo deixa de fluir da forma natural como tem de fluir. Se esta mulher era o vento, ela tinha este carma, este destino. Podia ter sido uma “princesa prometida”, ter outros sonhos, mas nasceu para cantar. [pausa] O tema passa a ser biográfico, mas também remete para a história de uma cantora que tem um dom e que tem de deixar que ele viva.

Na canção Poeta canta: “agora entendo a canção que ouvi a vida inteira”. É bom crescer e saber quem somos?

Sim, e acima de tudo não tem a ver com dúvidas, mas com aceitação. Enquanto não aceitarmos que temos uma dada condição, ela vai ser um empecilho para a nossa vida. Aceitar o destino, não como algo fechado ou que nos foi imposto mas como uma pacificação em relação àquilo que somos, é importante. Até porque muitas vezes é óbvio para os outros, que estão de fora.

É fácil aceitar críticas? Aceitar quem somos?

Quando tu aceitas aquilo que és e és sério nas tuas decisões, as críticas não vão desviar-te da tua segurança, da tua paz em relação a teres encontrado aquilo que és. Uma das coisas mais felizes deste disco foi acabá-lo com a sensação de realização pessoal de que consegui cumprir aquilo que foi o meu pensamento primordial: desenvolver a busca daquilo que o fado representa para mim, materializá-lo num disco que respeita, musicalmente, o meu gosto e a minha estética – no fundo, subtrair ao fado aquilo que para mim não é necessário para chegar ao essencial – e, depois, através de um movimento live in studio e mais orgânico, deixar que o momento e a verdade acontecessem. E, a meu ver, consegui-o desde o primeiro instante até à mistura final e à saída do disco – porque pelo meio há decisões e processos que ainda podiam alterar a essência do disco e podiam desvirtuar essa busca. Estou feliz com o resultado e, por isso, mais preparada para ouvir críticas. Quando cheguei a estúdio, o pensamento já havia sido feito, já havia regras definidas, de minimalismo, de procura pela essência. A direção musical foi feita nesse sentido. Foi um processo muito bonito. [sorriso]

Esta conversa não pode acabar sem falarmos no tema que pediu emprestado ao António Calvário e que é, em si mesmo, todo um ‘tratado’. Porque quis incluí-lo no álbum?

O Pop Fado é uma sátira para os dois lados. Brinca com os que não conseguem aceitar as mudanças do fado e, ao mesmo tempo, brinca com aqueles que pegam no fado e o fundem com qualquer coisa. No fundo, há esta dualidade que é fundamental para o fado continuar vivo – por um lado, o extremo de quem agarra a raiz e de quem preserva essa raiz e, ao mesmo tempo, aqueles que vão fazendo as suas fusões e experiências com o fado.

É uma espécie de recado?

Não. É um rir de mim própria! [risos] E é um fado que me diverte, que já tem 60 anos e continua a ser atual. Como já referi, o fado é uma língua viva e tem de ser atual. É um tema que faz muitas conversas de café, que faz muitas tricas entre os fadistas que estão puramente agarrados à tradição, que não percebem que a Amália também foi atual no seu tempo, que a Severa também foi transgressora no seu tempo. Por que razão haveríamos de parar agora? Até porque o fado está extremamente pop – nunca esteve tanto na moda, nunca passou tanto na rádio, nunca vendeu tantos discos, nem nunca foi tão acarinhado como agora. [sorriso] Por alguma razão se diz que o fado se aproximou do pop! Talvez por algumas escolhas de alguns artistas, mas há sempre aqueles que acham isso inaceitável. Enfim, haverá sempre esta dualidade.

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