Tem passado significativamente ao lado, quer da nossa opinião pública quer da nossa opinião publicada, a verdadeira querela autonómica-constitucional que, por estes dias, se vai travando aqui ao lado, em Espanha, a propósito do referendo autonómico que a Generalitat da Catalunha convocou unilateralmente para o próximo dia 1 de outubro, e que o governo central de Madrid tem contestado e ameaça impedir por todos os meios ao seu alcance.
A pergunta que será colocada aos catalães é a seguinte: “Está de acordo com um Estado Independente sob a forma de República?” Se o “sim” vencer, a independência será declarada no parlamento catalão 48 horas depois do referendo. Se perder, serão convocadas novas eleições autonómicas. E se o Governo espanhol impedir a realização desse referendo, a secessão será proclamada de forma automática e imediata pelo mesmo parlamento.
Esta disputa em torno da marcação e eventual realização deste referendo autonómico e independentista tem dominado todo o debate político em Espanha, e tem vindo em crescendo de radicalização, com as duas partes envolvidas a recorrerem a todos os meios ao seu alcance para conseguir a realização do sufrágio ou para impedir a sua concretização. A ponto de, em boa verdade, nenhuma delas ter, já, margem de recuo ou de negociação sob pena de perder irremediavelmente a face. E é esta radicalização já atingida no clima político da Catalunha que torna o processo referendário em curso num momento potencialmente perigoso, tanto para o Estado espanhol como para a própria Catalunha.
No que à Catalunha diz respeito, a generalidade dos estudos sociológicos encarrega-se de demonstrar uma realidade iniludível: a Catalunha está partida em dois blocos praticamente iguais. Significa isto que o referendo de 1 de outubro, a realizar-se e a concretizar-se, ameaça tornar-se numa verdadeira batalha de catalães contra catalães. Com outra agravante: o próprio bloco nacionalista catalão está longe de possuir uma estrutura homogénea ou coerente, com uma agenda coesa e coerente. A coligação Juntos pelo Sim – formada pela Esquerda Republicana da Catalunha e o Partido Democrata Europeu da Catalunha (PDeCAT, antiga Convergência) – e a CUP – Candidatura de Unidade Popular – convergem no apoio parlamentar ao governo autonómico catalão e na defesa da independência da Catalunha, mas não têm uma base doutrinária homogénea e comum.
Mas também do lado do bloco nacionalista espanhol – dominado pelo Partido Popular, pelo Partido Socialista e pelos Cidadãos – as divergências são profundas e assinaláveis. Une-os a recusa do referendo independentista, a negação da possibilidade de autodeterminação de qualquer autonomia espanhola e pouco mais. Entre estas formações partidárias, porém, não se divisa uma coesão ou uma homogeneidade de visões sobre o futuro territorial daquilo que é a Espanha dos nossos dias.
Nesse plano, aliás, estará do lado do Partido Socialista espanhol – sobretudo muito por efeito da renovada liderança de Pedro Sanchez – a abordagem doutrinária e dogmática mais consistente dessa mesma realidade da Espanha dos nossos dias, definindo-a como uma “Nação de Nações”. É uma perspetiva e uma abordagem, cremos, muito mais consentânea com a realidade do que aquela, por exemplo, que é sustentada pelo Partido Popular e por Mariano Rajoy – que embarcam no mito e no sofisma que a Constituição espanhola consagra, ao criar e referir-se a uma “nação espanhola”, realidade absolutamente mítica, inexistente quer no plano dos princípios quer no domínio dos factos.
É assim, uma Catalunha profundamente dividida no quadro duma Espanha minada pelas suas contradições territoriais, que se apresta a ter uma palavra decisiva sobre o seu futuro no próximo dia 1 de outubro. Se o referendo se realizar, o dia 2 de outubro será uma incógnita tremenda. Com ondas de choque que não se limitarão a Espanha e que poderão fazer-se sentir em vários territórios da União Europeia que anseiam pelos momentos de, igualmente, se poderem expressar sobre as suas autodeterminações. Se a vontade – e a força – de Madrid se impuserem e ganharem o braço-de-ferro com Barcelona, as consequências também não se adivinham fáceis de antecipar, atendendo, sobretudo, à divisão reinante na Catalunha.
O dia 1 de outubro marcará, assim, o confronto do Estado (dotado do acervo de competências que lhe restaram) com a sua Autonomia (que busca disputar uma parcela significativa daquele acervo). Saber quem levará a melhor neste braço-de-ferro pode ser determinante para o futuro não só da Catalunha, não só de Espanha, mas também de muitos outros territórios europeus. Por isso, toda a atenção que lhe dediquemos, não será demais.