Nunca lá fui. Não sei onde fica. Não faço ideia se tem eucaliptos. Nasci e cresci na cidade, nem sequer sei reconhecer um eucalipto. Desconheço quem são os meus vizinhos naquele terreno, ou se existem. Fiquei com esse património quando uma morte na família implicou um sorteio de lotes pelos herdeiros, tornando-me coproprietário de um “prédio rural” perto da aldeia onde parte da família morava, antes de virem todos para Lisboa. Salvo meia dúzia de vezes em que passei lá férias em criança, a minha ligação a essa aldeia da Beira Interior é quase nula. Agora demora-se quatro horas a chegar lá, antigamente era um dia inteiro. O terreno tem um valor patrimonial de 54 euros. Quando abro o Portal das Finanças, lá está ele, mas nunca me foi solicitado o pagamento de IMI ou de qualquer outra taxa, imposto ou o que quer que seja. E está assim há mais de uma década. Ocasionalmente, em conversa com o outro coproprietário da família, ocorre-nos vendê-lo ou fazer uma doação, mas não temos facilidade de contactos na zona. E acima de tudo sou um agente económico vagamente racional: respondo a incentivos. Antecipo que, para me desligar de um terreno que vale 54 euros, terei de gastar centenas de euros em deslocações, estadias e burocracias, perder tempo que escasseia. O único incentivo que tenho é o de manter tudo como está. Sou culpado de inércia e um criminoso em potência. Desde que tenho o terreno ainda não houve fogos de grande dimensão perto da aldeia, mas nada impede que isso aconteça. Se esse dia vier, e ali morrerem bombeiros ou famílias inteiras como em Pedrógão Grande, não saberei sequer se foi o meu terreno de meio hectar a causar tamanho sofrimento. Infelizmente não sou caso único. A minha situação é paradigmática do abandono a que grande parte do país rural está hoje votado, que explica como tragédias como a dos últimos dias tenham tanto campo fértil para deflagrarem. O fim do êxodo rural não se decreta, mas onde há uma falha o Estado tem de atuar. Não sendo um dos múltiplos especialistas instantâneos em incêndios, o que retenho das intervenções de quem percebe de facto da matéria leva-me a concluir que a solução tem de passar por uma ação mais assertiva dos poderes públicos. Seria uma reforma polémica, num país conservador em termos de propriedade. Os técnicos usam termos como emparcelamento ou gestão florestal. Em termos simples, significa que, no limite, o Estado tem de expropriar terrenos abandonados, sem proprietário conhecido, ou mesmo aqueles em que o dono se recuse ou não tenha condições para fazer a limpeza ou alterar a tipologia das plantações. A propriedade privada não é um valor absoluto quando está em causa o interesse público. Por favor expropriem o meu terreno, antes que seja tarde demais.