[weglot_switcher]

Conflito: Portugal tenta acabar com a “guerra esquecida” na República Centro Africana

Longe dos holofotes da comunidade internacional, a guerra na RCA arrasta-se há mais de cinco anos. Catorze grupos armados confrontam-se numa guerra que parece não ter fim à vista e que conta com militares portugueses na linha da frente dos combates.
30 Junho 2018, 19h00

O conflito na República Centro Africana (RCA) dura há mais de cinco anos e parece não ter fim à vista. Chamam-lhe “a guerra esquecida”, porque fora das fronteiras que delimitam o território, são poucos os que acompanham as tensões entre diferentes grupos armados, que deixaram o país à beira de uma guerra civil e uma das piores crises humanitárias da atualidade. Sob a égide das Nações Unidas e da União Europeia (UE), Portugal integra duas missões de contenção dos confrontos na RCA, mas no terreno as ações de apaziguamento têm sido incipientes. As organizações de ajuda humanitária queixam-se de não conseguirem operar no país por causa dos ataques constantes e defendem que o único caminho para a paz é o reforço das tropas na região, o que – sublinham – não é do interesse estratégico de ninguém.

O som dos disparos é uma constante nas ruas de Bangui, a capital da RCA. Diariamente, os militares portugueses patrulham os oito distritos que compõem a cidade, com o objetivo de controlar pontos de tensão e apoiar a população local. Catorze grupos rebeldes disputam entre si o controlo de recursos hídricos e das áreas ricas em diamantes. Desses, destacam-se duas grandes fações rebeldes: o Séléka, composto na sua maioria por muçulmanos, e o Anti-Balaka, de maioria cristã. Ao contrário do Séléka, o Anti-Balaka combate com armas artesanais e rudimentares e os seus membros têm por hábito andar sempre descalços. Já o grupo Séléka é mais organizado e equipado com armamento militar que circula por toda a África de forma mais ou menos clandestina.

Desde que o conflito estalou em 2013, dezenas de mesquitas e igrejas foram incendiadas, vários livros foram destruídos e membros de diferentes credos religiosos foram perseguidos e queimados vivos em praça pública. Para travar o avanço dos confrontos, a França, que durante seis décadas colonializou o país, acionou a Operação Sangaris. A intervenção militar de França despertou a atenção da comunidade internacional e, anos mais tarde, a Organização das Nações Unidas (ONU) e a União Europeia responderam ao pedido de ajuda. Entre as tropas que atualmente combatem no terreno, encontram-se 200 militares portugueses.

Alojados numa das bases francesas, localizada junto ao aeroporto de Bangui, 159 militares portugueses integram a Missão Internacional de Apoio à RCA (MINUSCA), projetada pela ONU e que conta com cerca 12 mil capacetes azuis no terreno. Destes, 156 são paraquedistas, membros do Exército e outros três elementos pertencem à Força Aérea. A estes militares somam-se outros 45, que fazem parte da Missão de Treinamento da União Europeia na RCA (EUTM RCA), que presta diretamente apoio às Forças Armadas centro-africanas.

O comando da EUTM RCA foi assumido no início de janeiro pelo brigadeiro-general Hermínio Maio, integrando 154 militares provenientes de onze países diferentes: Bélgica, Bósnia -Herzegovina, Espanha, França, Geórgia, Lituânia, Polónia, Portugal, Roménia, Sérvia e Suécia. “Esta é uma operação que corre em paralelo com o processo de estabilização da ONU e é extremamente importante para o crescimento do país e para a afirmação de um Estado de Direito”, afirma  o comandante Pedro Coelho Dias, porta-voz das Forças Armadas portuguesas.

Um Estado de crise permanente

Desde que a RCA se tornou independente, em 1960, o domínio francês deu lugar à instabilidade crónica no país. David Dacko foi eleito o primeiro presidente da RCA, unindo em si as esperanças de criar um Estado autónomo e próspero. Pouco anos depois de chegar ao poder, foi deposto pelo primo, o marechal Jean-Bédel Bokassa, considerado um herói na luta ao lado das forças francesas na Segunda Guerra Mundial. Com Bokassa nas rédeas do poder, a RCA mudou de nome para Império Centro Africano e Bokassa autoproclamou-se imperador ao estilo de Napoleão Bonaparte, pelo qual tinha um indisfarçável fascínio. A cerimónia de coroação foi marcada pela excentricidade, tendo custado cerca de um terço do orçamento do estado na altura. Bokassa chegou numa carruagem toda enfeitada a ouro, vestido um manto de nove metros de veludo e com uns sapatos de pérola. Só a coroa, com diamantes incrustados, custou perto de cinco milhões de dólares (cerca de 4,3 milhões de euros).

Se a intenção de Bokassa era colocar o país no mapa e distingui-lo dos restantes territórios africanos, a extravagância contribuiu apenas para deixar a nação à beira da falência. Até então apoiado financeiramente pela França, Bokassa foi derrubado por um novo golpe de estado, assim que o governo francês decidiu cortar o financiamento ao país. David Dacko voltou ao poder para reequilibrar as contas públicas e reinstaurar a república, mas (uma vez mais) ficou por um curto período de tempo. Seguiram-se uma série de outros governos pouco duradouros, acompanhados por novos golpes de estado sangrentos. A permanente instabilidade no país fez surgir um grupo rebelde dominante: o Séléka. O grupo, composto sobretudo por membros da minoria muçulmana da RCA, juntava três fações rebeldes diferentes: União das Forças Democráticas para a Reunificação (UFDR), União das Forças Republicanas (UFR) e Convenção dos Patriotas para a Justiça e Paz (CPJP).

O confronto entre o Séléka e o governo iniciou-se em 2013. O Séléka acusava o então presidente François Bozizé, pertencente à maioria cristã, de abuso de poder e de incumprimento dos acordos de paz assinados com diferentes grupos militares e religiosos, quando tomou posse. Um desses acordos estabelecia a criação de um governo de unidade nacional e previa o fim dos combates entre o governo e a oposição, mas aos olhos do Séléka essa nunca foi a real vontade do regime de Bozizé.

Em março de 2013, os rebeldes conseguiram o controlo da capital do país, Bangui, e obrigaram Bozizé a renunciar ao cargo de presidente. O líder do Séléka, Michel Djotodia, assumiu então a presidência e impôs um governo da minoria. Poucos meses depois, foi declarado o fim da aliança Séléka, cujos membros se dispersar no terreno e continuaram a cometer repetidas atrocidades contra os cristãos. Para dar resposta à afronta dos ex-Séléka foi criada uma milícia de maioria cristã, com o nome Anti-Balaka. Desde então, combatem os muçulmanos e antigos combatentes do Séléka, sem fazer distinção. Tendo em conta que os cristãos constituem uma maioria entre os centro-africanos, a ONU alerta para o cenário de “limpeza étnica” no país.

“Há uma certa instrumentação da questão religiosa neste conflito”, afirma ao Jornal Económico o comandante Coelho Dias. “Diz-se muitas vezes que são muçulmanos contra cristãos. Mas a questão ali não é apenas religiosa, até porque existem cristãos em grupos de maioria muçulmana, e vice-versa. A divisão sectária é bem mais complicada do que isso”, explica.

Uma presença ineficaz

É no terceiro distrito da capital que se encontra aquela que é considerada a zona onde a violência atinge contornos mais dramáticos: o bairro PK5, composto na sua maioria por membros de origem muçulmana. O comandante Coelho Dias descreve-o como “uma espécie de pulmão económico da cidade”. É aí que estão reunidos alguns dos mercados locais mais importantes de toda a cidade, sendo esta uma das zonas de eleição para a atuação de grupos criminosos organizados que, a troco de segurança, extorquem dinheiro à população local.

O bairro PK5 é, por isso, uma das áreas mais críticas para a atuação das forças armadas. Em várias operações em que foram chamados a intervir, os militares foram fortemente atacados pelos rebeldes. As missões internacionais de manutenção da paz não são bem vistas pela população que deveriam proteger. Em março de 2014, um contingente militar do Chade, matou 24 civis em Bangui, sem ter havido qualquer tipo de provoccação que justificasse o início dos disparos. O caso obrigou as tropas do Chade a retirarem-se do país e levantou desconfianças entre a população local sobre quais as reais intenções da comunidade internacional ao intervir no país.

No final de março, 60 militares portugueses da força de reação imediata (QRF) foram atacados por um ataque lançado pelas milícias locais. Um militar português ficou ferido, após ter sido atingido por uma pedra na perna. Em comunicado, o Estado-Maior General das Forças Armadas (EMGFA) explicou que o grupo armado terá utilizado mulheres e crianças como “escudo humano” para se protegerem e escaparem do local. O próximo contingente de militares portugueses deve chegar à RCA em setembro. Esta será a quarta Força Nacional Destacada (FND) a partir para o país e terá a mesma constituição da atual – 159 militares.

O comandante Coelho Dias garante que as operações das Forças Armadas portuguesas na RCA estão a decorrer como previsto, mas a maioria das organizações a trabalhar no país defendem que o número de militares no terreno deveria aumentar. Cerca de 70% do território está nas mãos dos rebeldes. A Human Right Watch defende que cabe à ONU “criar condições para o diálogo de paz entre os dois grandes grupos rebeldes, responsabilizar os autores de crimes sérios e iniciar o processo de desarmamento” no país.

Diante de um cenário de medo permanente e da elevada possibilidade de genocídio no país, foram quase 200 mil as pessoas que deixaram a RCA desde o início do conflito. Outros 100 mil centro-africanos amontoaram-se num campo de refugiados improvisado junto ao aeroporto da capital, acreditando que se trata de um local mais seguro ou de uma porta de saída mais rápida em caso de conflito. Desconhece-se o número total de vítimas mortais dos mais de cinco anos de conflito no país, mas acredita-se que o valor já tenha ultrapassado os quatro dígitos. Só nas primeiras duas semanas deste ano, foram mortos uma centena de centro-africanos.

Um ranking elaborado pela revista Forbes traça um perfil cruel à RCA. Na lista de países mais felizes do mundo, o país aparece em último lugar, com a classificação de país mais triste do mundo. Em termos económicos, os números são pouco animadores. Apesar de ser um país rico em recursos naturais (incluindo diamantes) e possuir consideráveis recursos hídricos, agrícolas e minerais, a RCA ocupa os últimos lugares do Índice de Desenvolvimento Humano. Ainda assim, a economia cresceu 4,7% a 2016, depois de uma queda abrupta em 2013. Entre os principais parceiros de comércio estão a Alemanha, a França e a China.

Copyright © Jornal Económico. Todos os direitos reservados.