Há uns meses, abordei num artigo de opinião um futuro não muito distante, de interligação entre o homem e a máquina, retratado no filme “Ghost in the Shell” por Scarlett Johansson, na “pele” de um cyborg. Hoje regresso ao tema com uma reflexão extremamente importante retratada na série “Altered Carbon” da Netflix.

O enredo é simples, num futuro que permitirá a digitalização e conservação da nossa consciência, nos chamados “stacks”, os humanos conseguem atingir a imortalidade, simplesmente trocando de corpos, ou “sleeves”. Corpos esses que podem ser melhores, piores ou iguais ao anterior, consoante a capacidade financeira do adquirente.

Em última instância, um homem pode acabar no corpo de uma mulher ou vice-versa, consoante a disponibilidade de “sleeves”, e a morte real é só mesmo para os pobres, ou para os que, por motivos religiosos, ficam registados como não aceitando o prolongamento da vida. Uma das cenas mais caricatas é um casal com filhos, lutadores profissionais, que praticam combates até à morte, com o vencedor a receber, para além do “ordenado”, um upgrade do seu corpo enquanto que o derrotado, entretanto “morto” provisoriamente, ganha um downgrade. A cereja no topo do bolo é o casal ter filhos, de tenra idade, que são frequentemente confrontados com os pais em corpos diferentes de cada vez que estes têm um combate.

Para além de diversas outras questões, de ética duvidosa ou que carecem de uma reflexão e debate aprofundados, existe uma que se sobrepõe às restantes. Refiro-me aos “Meth´s”, derivado da palavra “Methuselah” (Matusalém), referido na bíblia hebraica como o homem que mais tempo viveu. Na realidade, os “Meth´s” –  uma elite construída sobre a sua capacidade financeira – são os que têm possibilidade não só de viver eternamente, mas com qualidade de vida superior, escolhendo os “sleeves” que bem entenderem.

E aqui entra o meu “incitamento” à reflexão. A natureza, ao longo da sua história, tem exercido o seu poder de repor algum equilíbrio na humanidade através da inevitabilidade da morte. Quase todos os grandes impérios, militares ou financeiros, tiveram o seu canto do cisne aquando da morte do líder reinante. Ou porque os descendentes não tinham a mesma capacidade de liderança, ou porque não tinham, em si, as características para prolongar ditaduras. Em suma, nenhum mal ou prosperidade foram eternos.

Isso muda com ideia da imortalidade e do eterno rejuvenescimento das capacidades físicas dos mais poderosos. Já imaginou uma elite imortal de opressores, militares ou financeiros, capazes de manter a capacidade de expandirem o seu poder junto de uma sociedade “escravizada”? Se hoje existem desigualdades sociais, imagine a perpetuação e agravamento das mesmas através do prolongamento ad aeternum da situação.

A humanidade caminha para a imortalidade, se a mesma chegará primeiro via rejuvenescimento do corpo ou pela eternização da consciência, ainda é incerto. Certo é que já hoje o tema da digitalização da consciência é tópico recorrente nos principais players da novas tecnologias, começando para já pela interligação entre o cérebro e o computador. Mas nem é preciso chegar a esse ponto para se debater os riscos: cerca de 88% dos empregos perdidos nos EUA, entre 2000 e 2010, foram-no devido à automação (Bloomberg), o mundo caminha para uma singularidade na expansão das novas tecnologias, a Inteligência Artificial, referida pelo CEO da Google como mais poderosa do que a electricidade ou o fogo, e os quantum computers vão revolucionar o mundo.

Uma boa parte será prejudicial ao mercado de trabalho, daí que se comece a falar na questão do Rendimento Básico Incondicional (RBI), mas isso é muito pouco, até porque o RBI pode ter mais-valias, mas tem um calcanhar de Aquiles fatal: expande e perpetua a classe baixa, permitindo aos que hoje mais têm aumentar a desigualdade para os menos favorecidos e, no processo, validar uma parte do mundo “futurístico” apresentado na “Altered Carbon”.

Cumpre-nos deixar um mundo melhor para os nossos filhos, com menos desigualdades e mais aproveitamento geral do maravilhoso mundo do futuro. Mas, para isso, precisamos hoje mesmo de começar a reflectir e a debater – muito – de forma prolongada e abrangente, abordando as questões éticas e humanas e não deixando ao acaso a construção de um futuro que poderá favorecer muito mais uns que outros, só pelos números que têm na conta bancária.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.