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“Desde o início do século já houve cinco períodos de seca”

O presidente da APA deixa vários alertas sobre a escassez de água, principalmente no sul do país. Nuno Lacasta revela quais os planos que vão ser postos em prática para tentar mitigar a falta de água.
29 Novembro 2020, 11h00

O presidente da Agência Portuguesa do Ambiente (APA) avisa que existe uma situação de “escassez” de água, principalmente na região sul de Portugal. Em entrevista ao Jornal Económico, Nuno Lacasta avança que há inúmeros projetos que vão tentar reverter esta falta de água, incluindo centrais de dessalinização no Algarve, com a possibilidade de transportar água do Alqueva para o Algarve, estando estas duas soluções ainda em estudo. O responsável também defende que é importante investir nos próximos anos na melhoria das redes de água, pois as perdas em alguns pontos do país chegam a atingir os 30%. Numa região que sofre com a falta de água, o líder da APA também defende que os campos de golfe no Algarve têm de usar mais água residual tratada nos seus campos.

 

Qual o cenário para os próximos anos em termos de falta de água em Portugal?
A situação é de facto de escassez. Para se perceber a importância há uma fonte de análise que é o índice de escassez, que determina por região hidrográfica o stress hídrico a que se encontra sujeito um determinado território. Em Portugal temos várias regiões com maiores índices de escassez: 38% nas ribeiras do Oeste, 36% no rio Sado, 33% no rio Mira, 27% nas ribeiras do Algarve, número que tenderá a agravar-se nos próximos anos, e 25% no Guadiana, um número que compara melhor com outros por causa do Alqueva. Se fizermos uma média nacional, Portugal tem um índice de escassez de 14%, mais reduzido face aos valores anteriores, porque temos capacidade de armazenamento, de gestão e de pluviosidade a norte.

 

No rio Tejo a situação é preocupante?
No Tejo há uma diminuição de cerca de 24%-25% face ao histórico de escoamento, isto é, está a chegar menos 25% da água a Portugal do que acontecia historicamente. O que chega é suficiente para cumprir cabalmente os limites de convenção de albufeira, mas isto implica que Portugal e Espanha têm de olhar para a disponibilidade e para os usos de forma completamente diferente daquela que faziam historicamente, em que licença pedida era licença concedida. O futuro não vai ser assim, vamos ter de olhar para as licenças existentes, vamos ter de olhar para as licenças novas e vamos ter que no fundo racionar um recurso escasso. Isto é relevantíssimo para pensarmos depois como gerimos as situações de seca.

 

Na última década, Portugal viveu vários períodos de seca. A situação é grave?
Portugal tem uma experiência centenar na gestão de seca, a última grande seca que tivemos foi em 1944/45. Mas no início do século XXI já ocorreram cinco períodos de seca, alguns comparáveis com 1944/45: 2004/05, 2008/09, 2011/12, 2014/15, 2016/17. Desde que estou na APA – 2012 – já levo três períodos de seca. Há aqui uma espécie de novo normal em que se calhar o que temos de pensar é: temos períodos de alguma abundância entre períodos mais prolongados de seca. É fundamental percebermos isto até no contexto das alterações climáticas em que vamos ter menos precipitação no cômputo do ano, vai se concentrar em menos períodos, Portugal passará a ter uma estação de chuvas e o resto do ano. Vamos ter muito mais dias com temperatura superior a 24/25 graus do que anteriormente, isso significa mais tempo com temperaturas mais altas, mas maior evapotranspiração da água no sol.

 

Por serem as duas regiões mais afetadas em Portugal, o que está a ser preparado para o Alentejo e o Algarve?
Temos 12 projetos na área do Alentejo, em particular na ligação entre as condutas da EDIA [Empresa de Desenvolvimentos e Infraestruturas do Alqueva], com várias albufeiras localizadas no Sado e no Guadiana. Estamos a montar uma verdadeira rede, no sistema do Alqueva, com outros sistemas de rega de abastecimento no Sado e no Guadiana. Temos três projetos de aumento de armazenamento de barragens já existentes, fazendo alteamentos e limpeza, aumentando por isso a capacidade de retenção nas barragens de Pretarouca no Douro, Fagilde no Mondego, e Lucefécit no Guadiana. Estamos a avaliar um conjunto de locais para a instalação de pontos de água, ou cisternas, associados a albufeiras de águas públicas e dessa forma temos também uma rede suporte para situações de emergência. E está também já em marcha toda uma iniciativa para promover a reutilização de água residual de origem urbana tratada, em regas de espaços públicos, ruas e jardins públicos. No Alentejo, e em algumas zonas do Algarve, é um desafio apesar de tudo, porque sendo zonas pouco urbanas, por um lado, gera-se pouca água para reutilização e o espaço é muito vasto, mas ainda assim há trabalho a fazer nesta área. Em relação ao Algarve, está a ser estudado. O Governo encarregou a APA de estudar a possibilidade de ligação de água do sistema EDIA também ao Algarve, para compensar também os aproveitamentos existentes no próprio Algarve. O Algarve necessita de fazer mais reutilização de água, com os campos de golfe à cabeça. Temos muitos campos de golfe no Algarve e é o mínimo que se pode exigir numa situação destas, como forma de salvar esta componente fundamental da economia do Algarve. Trabalhamos ativamente na reutilização de água de golfe. Mas também na agricultura, há vários projetos que estão a ser equacionados. A Águas do Algarve está também a estudar, em articulação com a APA, as valias técnico-económicas da dessalinização.

 

Quando estará preparado o estudo sobre a transferência de água para o Algarve?
O estudo é do Estado, do Ministério do Ambiente e das Alterações Climáticas (MAAC), e da APA. Não vamos acelerar os resultados deste estudo, é complexo e tem a necessidade de articulação com a vizinha Espanha. Começamos o estudo há pouco tempo e ainda vai durar, certamente, ainda uns meses.

 

As centrais de dessalinização que referiu no Algarve também fariam sentido no Alentejo?
Neste momento está apenas a ser estudado essas centrais no Algarve. Estas centrais têm muito a ver com a população e com o carácter cíclico e sazonal da utilização turística que sobe quase um milhão.

 

Referiu o uso de águas residuais no Algarve. Que outras regiões e setores podem beneficiar da reutilização desta água?
Portugal tem, historicamente falando, níveis de reutilização de água muito baixos quando comparamos com Espanha e França, mas sobretudo com Espanha que tem uma situação muito idêntica à nossa em termos ecológicos. Espanha reutiliza em certos setores entre 6% a 12% enquanto que em Portugal tem valores inferiores a 2%. É absolutamente central conseguirmos atingir valores idênticos aos da vizinha Espanha, em algumas áreas mais e noutras áreas menos. E por isso, é absolutamente essencial trabalharmos esta frente com uma frente alternativa de gestão do recurso que é escasso, a água. O setor agrícola, mas alguns industriais também, devem minimizar os efeitos de seca e escassez, isto é, quanto mais água nós reutilizarmos menos se capta e menos se liberta do rio. Um ciclo fechado de reutilização ajuda a minimizar estes efeitos. Portugal tem hoje já em vigor um regime para a produção de reutilização de água para reutilização, sobretudo em espaços públicos porque é água que vem de ETAR [estações de tratamento de águas residuais], que se localizam em cidades e zonas urbanas, mas também em espaço de área agrícola. Estamos a desenvolver um guia prático de apoio ao exercício desta atividade e até para ajudar a licenciar estas mesmas iniciativas. Foram identificadas cerca de 50 ETAR no país que estão a servir de piloto para estas situações. Aqui na cidade de Lisboa, há duas ETAR, que já estavam pré-preparadas, na zona da Expo, com redes próprias para esta reutilização. Noutras zonas do país onde isso não existe há que criar os benefícios desta mesma iniciativa e daí os pilotos.

 

Em relação às redes de abastecimento, é preciso melhorar estas redes que,  em alguns pontos do país, registam perdas de 30%…
Sim, em alguns pontos e não são poucos, infelizmente. Se pensarmos nos quadros comunitários de apoio em matéria de água e saneamento, fizemos investimentos absolutamente fenomenais e por isso é que Portugal é considerado, muitas vezes, como um milagre europeu. Numa geração passámos de níveis de abastecimento e saneamento de terceiro mundo para níveis de primeiro mundo. Hoje em dia bebe-se água da torneira em qualquer parte do país. No Algarve, nos anos 80 isso não era possível. Não podemos nunca deixar de enaltecer este avanço. Mas houve uma área onde ficamos para trás: a área de baixa, nomeadamente, aquele percurso entre as redes de distribuição e a nossa casa. Temos de facto perdas de água que em média podem ascender aos 30%. É com alguma frustração que reconheço que, entre os vários planos comunitários, esta área foi ficando para trás. É necessário que esta melhoria seja feita em estreita cooperação entre os municípios, para haver mais agregação entre sistemas de distribuição de água entre vários municípios porque a verdade é que cada um deles isolado é demasiado pequeno para ter eficiências e capacidades de investimento nestas áreas. Não há dúvida nenhuma que ainda temos um longo caminho a percorrer nesta questão. Por um lado, é imperiosa, por outro lado a melhor forma de poupar água é não consumir. Ao desperdiçamos 30% de água em muito sítios é estarmos a tratar a água para depois deitá-la fora. É uma situação que tem de mudar e no próximo quadro comunitário de apoio será importante investirmos nesta área.

 

A APA considera  que a gestão das bacias hidrográficas tem sido eficaz?
Cada caso é um caso. No Guadiana, o sistema Alqueva foi crucial. Um projeto tão polémico durante tantas décadas, mas é obviamente crucial para a gestão sustentável daquela região. Não teríamos hoje a situação que temos, e não teríamos enfrentado estas secas que temos, se não tivéssemos o Alqueva teria sido uma situação absolutamente calamitosa. No Rio Tejo, claramente que a crise de 2017/2018 foi focada e veio trazer à tona um problema mais crónico de, por um lado, menos escoamento, menos disponibilidade, e, por outro lado, de uma histórica autorização de usos que precisava de ser regrada. Ainda assim, é um rio com pressões que nos obriga a manter constantemente a guarda e o trabalho de estudos com vista à reposição do quadro de licenciamento. É um rio mais precário, também tem desafios de sedimentos e assoreamentos, que requer ser assoreado, e sabemos que estão em cima da mesa alguns projetos de aproveitamento de reservatórios, sobretudo para uso agrícola que têm de ser estudados e têm de ser olhados com muita atenção. Temos um problema quer no Tejo quer no Guadiana, e em algumas zonas do Mondego, de espécies infestantes que nos últimos anos se têm constituído cada vez mais um problema, nomeadamente o jacinto de água, e que nos obrigou a preparar uma estratégia. É normal, veio para ficar um pouco por todos os rios e todos os anos vamos ter de remover, em colaboração com agricultores e municípios, estas espécies infestantes. No rio Mondego, temos um rio muito regularizado, um rio com uma exploração agrícola a jusante de Coimbra muito intensa, onde a divisão da água entre usos agrícolas e outros usos é histórica, e também o uso industrial da celulose que requer atenção. No rio Mondego, como sabemos, temos cheias periódicas, e essa é uma frente, onde ainda no ano passado tivemos um rebentamento num dos leitos periféricos do rio. No rio Mondego, vamos ter um investimento superior a 100 milhões de euros em várias frentes, é um rio central e nacional que urge continuar nele a investir na regularização e gestão. O rio Douro é navegável, é importantíssimo como todos sabemos, vai ter pressão nos próximos anos e é uma frente que estamos a monitorizar com muita atenção. Existe também a necessidade inevitável de passar a ter rega na vinha. Há projetos dessa natureza, o estudo está a ser feito, porque com os cenários de escassez da água evidentemente que vamos ter rega gota a gota muito bem pensada, muito estratégica, e estamos a trabalhar nessa frente. Diria que todos os rios são situações distintas.

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