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Fernando Aramburu: “Há uma tendência clara de regresso à censura”

60 anos depois, a ETA chega ao fim. A reconciliação ainda está por fazer, a convivência começa, quiçá, a dar os primeiros passos, o perdão, esse, tardará. Em entrevista, Fernando Aramburu, escritor basco radicado na Alemanha, destaca a importância da convivência social e da normalização política no País Basco, mas realça que “não é possível construir a convivência sem a memória”.
12 Maio 2018, 11h00

O anúncio é histórico e teve lugar no dia 2 de de maio, antecedendo em cerca de um mês a data em que ocorreu o primeiro atentado da ETA – Euskadi Ta Askatasuna – a 7 de junho de 1968, no qual foi assassinado o agente da Guarda Civil José António Pardines Arcay. O balanço de meio século de atividade – 857 vítimas mortais, entre as quais três portugueses e 24 crianças – ainda está presente na memória dos que viveram de perto o terrorismo etarra, mas que os jovens com menos de 25 anos desconhecem.

O silêncio impera no seio das famílias e na escola. A violência da ETA é tabu e talvez essa seja uma das razões porque “Pátria”, de Fernando Aramburu se tornou um sucesso de vendas em Espanha. Até porque o tecido social não é feito apenas daqueles que querem esquecer, mas também dos que querem saber – os jovens. Como refere o escritor ao Jornal Económico, na sua passagem por Lisboa para o lançamento da edição portuguesa, com a chancela da D. Quixote, o público que tem afluído às sessões de apresentação e promoção do livro é maioritariamente jovem. Aliás, “nunca houve tantos jovens a ler-me como agora, com ‘Pátria’”.

Falamos de uma obra de ficção que entronca na história coletiva do País Basco, ou não fosse essa a postura do autor, para quem “um romance não é a verdade, mas sim uma representação da verdade”. Uma verdade que viveu de perto até aos 25 anos, quando partiu para a Alemanha por amor e não por razões políticas, e onde reside há mais de três décadas.

Nascido em 1959, ano da fundação da ETA, Aramburu recorda as ruas de San Sebastian, sua terra natal, com pichagens, palavras de ordem, nomes escritos nas paredes, por cima dos quais muitas vezes se desenhava um alvo – gente a abater, portanto. Hoje em dia não há vestígios, nem testemunhos silenciosos do terrorismo etarra nas ruas de San Sebastian. A cidade limpou a cara e a memória parece também esbater-se. Os mais jovens não têm informação sobre esse período porque não o viveram pessoalmente. As feridas abertas pelo conflito, a vergonha das vítimas, os assassinatos, os sequestros, os medos e desavenças, a radicalização e o aliciamento dos jovens, as fraturas familiares vão-se perdendo, calando. “Sem a pedagogia da memória, o esquecimento tudo apaga”, realça Aramburu.

Em outubro de 2011, a ETA anunciou o final das ações terroristas, mas não sem antes tentar negociar uma condição: a saída das forças de segurança do País Basco. A recusa de Espanha e o apoio das autoridades francesas a Madrid deixou os etarras sem estratégia. Tentaram a mediação internacional, mas Madrid e Paris nunca viram com bons olhos a tentativa de internacionalização do conflito. Aliás, a referência a um “conflito” era, por si só, uma maneira de a organização não assumir os atos terroristas que levou a cabo.

“Fora da democracia espera-nos o inferno”, diz Aramburu. “O que mais me indigna é o uso da violência e não o facto de uma pessoa ser independentista. A ETA foi uma organização criada para impor um projeto político mediante o assassinato de pessoas. Isso é inaceitável!”. E recorda que “há mais bascos que, apesar de não se sentirem espanhóis, são contra a violência”. No seu caso, garante que nunca sucumbiu ao canto da sereia – o apelo da ETA. “Nunca me deixei levar pelo discurso independentista, porque nunca senti que os bascos fossem um povo oprimido”.

Diria que o seu livro pode ajudar a desmontar o discurso glorificador da ETA?

Gostaria muito que assim fosse! Hoje em dia, um escritor, quando vai a encontros e festivais literários, tem a oportunidade de conversar com os leitores. E isto permite saber diretamente quais foram as repercussões que o livro teve naqueles que o leram. Ora, o facto de ter podido falar com os leitores ajudou-me a perceber que muitos não sabiam o que se tinha passado no País Basco. Liam notícias e tal, mas tinham uma ideia vaga das coisas. Não sabiam como era a vida quotidiana numa sociedade em que a violência era uma prática corrente. Percebi isso graças às muitas conversas que tive com os leitores. Mas, voltando à pergunta, não é um livro, por si só, que pode mudar a vida das sociedades. Seria fantástico se isso pudesse acontecer! E para que um livro possa ajudar a alguma mudança, é preciso, antes de mais, que seja lido massivamente.

Tem alguma explicação para o facto de a Europa ter, à época, ignorado o que se passava no País Basco?

Nos anos 80, fiquei muito desiludido com o facto de muitos cidadãos alemães pensarem que o povo basco queria emancipar-se [de Espanha] e que, para isso, havia criado um grupo armado, terrorista, que era apoiado por todos os bascos, chamado ETA. Isso é mentira, mas esse mito triunfava na Europa porque, entre outras razões, os elementos da ETA viajavam pelos países europeus para venderem essa mentira. Sei disso porque assisti a várias situações em que os representantes políticos da ETA falaram perante uma plateia de alemães, dirigindo-se ao cidadão médio, que os ouvia e acreditava que assim era. Acontece a toda a gente. Todos temos uma ideia muito superficial do que se passa no mundo! Um alemão médio não pensa nem se preocupa com o que acontece num país do Sul da Europa…

Vive na Alemanha há 32 anos, pelo que tem acompanhado o esforço dos diferentes governos para preservar a memória.

Sim, mas estamos a falar de outra coisa. A Alemanha levou décadas até assumir esse passado. Hoje em dia há uma abordagem pedagógica da sua própria História. É normal que os jovens do liceu façam visitas aos campos de concentração para se inteirarem do que aconteceu. Leem livros e veem filmes sobre o que aconteceu… mas, há uns 20 anos atrás, isso não acontecia! Lembro-me que nos anos 80 ainda havia um grande sentimento de culpa coletiva, de vergonha, pelo que acontecera no passado. Falamos de acontecimentos muito negativos que minam o prestígio de uma nação.

Digamos que o tempo ajuda a sanar o passado…

O tempo resolve tudo e a memória acaba por ficar guardada nos arquivos, nos museus e nas bibliotecas. O esquecimento acaba sempre por triunfar, em todo o lado. Mas isto não significa ser cúmplice do esquecimento. É sempre possível fazer alguma coisa para retardar o esquecimento.

Sei que propôs a criação de um “Fundo de Memória” para o País Basco. Em que consiste esse projeto? Está em curso?

É uma proposta que visa dar forma à memória coletiva. A ideia não é que os jovens prescindam do presente para passar 24 horas por dia a pensarem na história dos seus pais, avós… A ideia é criar uma memória e colocá-la num determinado espaço para que não desapareça: filmes, livros de história, romances, livros de poesia, ensaios, documentos vários para criar uma “base de memórias”. Parece-me que é uma tarefa urgente e que deve ser levada a cabo pelos contemporâneos daquilo que se quer recordar. Ou seja, por aqueles que viveram de perto esses acontecimentos.

A sua geração vai participar ativamente nessa empreitada? Está interessada em contribuir para a convivência no País Basco?

Por um lado, acho que a minha geração, ou pelo menos parte dela, está a construir a narrativa, a conversão em textos de um passado histórico. Creio que a minha geração já está a fazê-lo. No que respeita à convivência, não sei se está a fazê-lo, mas sei que não é possível construir a convivência sem a memória. Apagar o passado e fingir que somos todos amigos é uma falsidade total! Creio que a convivência numa sociedade tem, forçosamente, de ter por base a verdade. E nem tudo o que acontece numa sociedade é positivo e é preciso ter isso em conta. Até para que não volte a acontecer!

Algum partido se apropriou ou usou o seu romance para fins políticos?

Esse é um assunto que me preocupou bastante, porque considero que um escritor deve manter-se à margem da política. É muito fácil instrumentalizar a obra de um escritor. A partir do momento em que um escritor publica um livro, o que vai acontecer com essa obra já não está nas suas mãos. São os leitores e os críticos que vão determinar o que significa esse livro. “Pátria” também foi lido pela classe política espanhola e, neste caso concreto, foi elogiado por políticos de diferentes partidos, à exceção de políticos de alguns partidos nacionalistas ou da extrema-esquerda. Seja como for, não cabe a um escritor comentar comentários. Não faz sentido. Aliás, quando “Pátria” foi publicado, eu já estava a escrever outro livro. O meu horizonte de escrita já era outro.

Sendo um assunto tão sensível, poderia haver a tentação de usar o seu livro como marketing político. Não seria inédito.

Pois, os políticos agem sempre em função de determinado interesse, é um facto. E também é verdade que os políticos estão sempre em campanha eleitoral, uma vez que vivem dos votos dos eleitores. Posso dizer-lhe que, entre outras figuras políticas, o presidente Rajoy elogiou o meu livro. Não sei se isto é boa ou má publicidade para o meu livro, mas prefiro não comentar. E não é por isso que vou fazer campanha a favor deste ou daquele. Sou um homem independente! Ninguém sabe em quem voto, nem estou ao serviço do programa eleitoral de quem quer que seja. O êxito de um livro atrai o político, é ele que vem ter comigo e não o contrário.

As vezes que teve oportunidade de conversar com leitores, que feedback teve dos jovens que não viveram as décadas de terrorismo etarra? Qual é a sua perceção?

Os jovens descobriram-me com este livro. Antes não liam as minhas obras. Muito poucos o faziam, mas agora sim. E leem com interesse e espanto, por descobrirem que, há relativamente poucos anos, as ruas onde hoje passeiam foram palco de atos absolutamente terríveis. Ficam muito surpreendidos com isso.

Hoje em dia não se fala do que aconteceu? Oculta-se o passado para se seguir em frente?

Bem, na verdade, os vestígios de violência desapareceram da sociedade. Já não se veem palavras de ordem nas paredes das casas, não há placas vandalizadas, pichagens… San Sebastian é hoje uma cidade limpa, maravilhosa. Ou seja, não ajuda à memória daquilo que foi até muito recentemente. Mas podemos olhar para isto de diferentes ângulos. É certo que não ajuda a preservar a memória, mas ajuda a que os jovens cresçam num ambiente mais saudável e mais pacífico. Daí ser importante contar o que aconteceu para que os jovens saibam o que se passou. E se tiverem curiosidade e interesse, podem sempre procurar testemunhos, falar com quem viveu esses tempos, ler livros de história, ver filmes que retratam esse período e ficar com uma ideia do que aconteceu nesse mesmo lugar e numa determinada época.

Os livros escolares não abordam esse período da vida basca?

Dificilmente.

Como vê a situação atual na Catalunha? O País Basco pode ser contagiado pela vaga independentista?

Já tivemos a nossa dose e não creio que a História vá repetir-se. Não! Vejo com tristeza o que se passa na Catalunha. Tenho amigos catalães que chegaram ao ponto de não se falar. Há famílias destruídas por razões políticas, por terem convicções distintas uns dos outros. Já vi isto acontecer… Diria que já é tempo da classe política catalã se sentar à mesa para conversar e encontrar uma solução política razoável para ultrapassar a atual paralisia.

Ainda há espaço para o livre pensamento numa altura em que parece prevalecer o politicamente correto?

Isso do politicamente correto é uma perfeita parvoíce! E o mais curioso é que ninguém consegue definir o que é o ‘politicamente correto’. Não gosto particularmente do conceito, se é que se pode designar como tal. O que constato, contudo, é que estamos a viver uma mudança histórica. Diria que o período histórico iniciado no Maio de 68 está a chegar ao fim. Refiro-me ao período em que se romperam tabus continuamente, em todos os sentidos, relacionados com a liberdade individual, o hedonismo, o questionar das normas instituídas. Creio que foi muito produtivo. Sempre que havia uma norma, uma regra, alguém a punha em causa. Atualmente, parece-me que há uma tendência clara de regresso à censura, de impor normas, de recuperar tabus, de vigiar quem cria – artistas das mais diversas áreas, escritores, pensadores – para garantir que seguem uma determinada direção. Pessoalmente, isso desagrada-me. Prefiro a exceção, prefiro questionar as normas e convenções.

Enquanto escritor, sente essa vigilância?

Posso dizer que, neste momento, em Espanha, há uma vigilância apertada nas redes sociais em torno dos escritores: se são racistas, sexistas, fascistas, se dizem ‘amigos’ e ‘amigas’… Esta vigilância é coerciva, limita a liberdade do outro. Estamos a regressar a posturas inquisitoriais, à restrição da liberdade de movimentos, a uma certa mordaça da criatividade. Diria que é isso que está a acontecer, pelo que gostaria muito que alguém me explicasse o que é isso do ‘politicamente correto’. No meu caso, escrevo o que me dá na real gana. Ninguém me diz que o devo escrever! É-me indiferente se sou, ou não, politicamente correto. Até porque me parece que é uma ação exterior ao criador, ou seja, aquele que cria, e que visa acima de tudo limitá-lo. Não gosto disso, nem pactuo com isso. Gosto do ato solitário da escrita. Levo anos para terminar um romance – no caso de “Pátria” foram três anos intensos – e recuso-me a perder tempo a pensar se estou a ser politicamente correto. Não alimento isso!

Tem-se falado no fenómeno das fake news e na tomada de decisão política com base em reações da opinião pública nas redes sociais. Como vê isto?

Tenho uma página no Facebook e uma conta no Twitter por questões profissionais. Mas devo dizer que foi sempre assim. Antes não havia redes sociais, mas havia pessoas analfabetas. Vai dar ao mesmo. Ou seja, esses fenómenos ilustram bem a fragilidade dos indivíduos, mas existe um antídoto para as fake news: a cultura! As pessoas têm de ler livros, não podem limitar-se a ler o que está na internet. Têm de filtrar. Não podem contentar-se com o que veem na televisão e leem nos jornais. Se as pessoas não se esforçarem para ver mais além, é mais fácil enganá-las e manipulá-las. A cultura é absolutamente indispensável. No meu caso, por exemplo, que venho das camadas baixas da sociedade, foram os livros que me ajudaram a preencher lacunas e a ‘dar o salto’. Aprendi muito e estou muito grato à cultura. Por isso digo que a cultura é tão necessária ao ser humano como o ar que respiramos.

(Entrevista publicada no caderno Et Cetera a 27 de abril de 2018)

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