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Fundo de recuperação: o grande salto em frente

Se a União Europeia não conseguir assegurar o fundo de recuperação, deixa pura e simplesmente de fazer sentido. Mas, se conseguir, é possível que nunca mais venha a ser a mesma; vêm aí os Estados Unidos da Europa?
28 Junho 2020, 16h30

A União Europeia, na sua apesar de tudo pequena história, está pela primeira vez confrontada com a possibilidade da sua própria dissolução. A pandemia de Covid-19 e a profundidade da crise que está ao virar da próxima esquina – em relação à qual já ninguém corre o risco de afirmar que será em V, mas em prolongado U – transformou o volume dos apoios comunitários num tema apenas acessório.

Antes de chegar aos números, os 27 – que aparentemente terão cumprido com alguma qualidade a crise do Brexit – tiveram que decidir se haveria ajuda, e as coisas, logo aí, não correram bem. A diferença de opiniões entre os países adeptos do mutualismo alargado (até ao ponto das dívidas) e os que a ele se recusam ceder por taticismo orçamental não só apanhou os europeus desprevenidos – talvez os mais distraídos – como fez regressar ao cerne da agenda a pergunta ‘mas afinal isto (a União Europeia) serve para quê?’.

Parece evidente que, se ‘isto’ não serve para uma resposta conjunta a uma crise, seja ela qual for, os sucessivos tratados da União Europeia pouco acima vão dos meros tratados comerciais e acordos aduaneiros – formas mais simples, eficazes e com estruturas bem mais baratas – que quaisquer dois mercados naturalmente tendem a concluir quando têm alguma coisa em comum.

O primeiro-ministro António Costa foi muito claro quanto a essa matéria: no mesmo dia em que mais uma vez demonstrou ter pouca paciência para os estados de alma dos holandeses, afirmou que o combate à pandemia será uma prova de vida da União. Se ela falhar essa prova de vida, tudo o mais falhará.

Mesmo que não seja de imediato: um combate deficiente à Covid-19 irá desfazer todo o já minguado capital de esperança na União Europeia como instrumentos de federalização do espaço europeu – essa espécie de península do gigantesco território da Ásia, era capaz de convir não esquecer isso – e, por essa via, feri-la-á de morte.

 

De volta aos velhos tempos
O facto de o maior empenho no processo de recuperação vir do eixo Paris-Berlim – que o presidente francês, Emmanuel Macron ‘ressuscitou’ quando foi eleito para logo de seguida dele se esquecer – fez de algum modo regressar a União aos seus primórdios. E isso não parece ser necessariamente mau. Com a entrada do Reino Unido a dar-se apenas em 1973, mais de 15 anos depois da sua criação, os dois motores do agregado – a maior potência económica e o único membro do clube nuclear – estavam como que obrigados a convergir para que as coisas corressem bem.

De algum modo, a entrada do Reino Unido – que Charles de Gaule impediu até ao limite do aceitável, ou até mesmo para lá dele – acrescentou um novo motor (por acaso também do clube nuclear) que verdadeiramente nunca conseguiu funcionar em linha. Quando muito, funcionou em regime de alternador: entrava em combustão quando o eixo Paris-Berlim perdia fulgor.

O regresso dessa força parece dar-se como que para impor algum ‘respeito’ (ou até mesmo vergonha) aos chamados países frugais, que parecem ter uma visão ‘protestante’ (como diria Max Weber, apesar de a Áustria ser romana) da sua presença na União.

 

Um velho conhecido
A importância desta decisão de avançar com uma barragem comum contra as metástases da Covid-19 é de tal ordem, que conseguiu a adesão do mais improvável dos seus adeptos (para além da totalidade do governo holandês): Wolfgang Schäuble, ex-ministro das Finanças germânico, agora convertido à condição de presidente do parlamento alemão.

“A proposta de Merkel e Macron foi uma boa notícia para a Europa”, disse em entrevista ao “Welt am Sonntag”. “Esta iniciativa é um passo ousado na direção certa para superar esta crise. A proposta franco-alemã seria um grande passo em direção a uma união fiscal e uma união monetária realmente funcional, mesmo que o fundo de reconstrução seja apenas temporário”. Surpreendente? Sim.

Mas Wolfgang Schäuble observa dois problemas. Em primeiro lugar, disse que a Comissão Europeia terá que controlar com grande rigor “a forma como o dinheiro será usado”. E em segundo, Schäuble – que nesta matéria diverge do atual ministro das Finanças alemão, Olaf Scholz, do SPD (que é da CDU) – afirmou que a iniciativa franco-alemã não deve ser vista como uma espécie de estágio preliminar da criação de um Estado europeu. “Falar sobre os ‘Estados Unidos da Europa’ não é útil”.

 

Estados Unidos da Europa?
Mas é também neste plano que a ajuda comunitária está a ser discutida: até que ponto uma iniciativa que pode vir a ser fundamental no estabelecimento das bases do futuro desenvolvimento da União pode ser – ou será mesmo – o passo que faltava para a criação (ou aproximação) aos Estados Unidos da Europa.

Há-de ser por essa razão que a ala mais nacionalista (e, recorde-se, profusamente composta por anti-europeístas) que deu entrada com estrondo no Parlamento Europeu aquando das eleições de maio passado, tende a fazer a ponte com os países frugais na recusa, por princípio, do fundo de recuperação. Matteo Salvini, ex-ministro italiano e líder da Liga, mais os seus amigos dos Irmãos da Itália e dos das Forza Itália (que em conjunto compõem a poderosa extrema-direita transalpina), apressaram-se a organizar manifestações contra o plano, apesar de ser precisamente a Itália o país que irá usufruir da fatia mais significativa dos 750 mil milhões de euros: 172.754 milhões.

A questão é por isso também profundamente política e os comentadores sabem que uma ajuda comum tem muitos alçapões que podem esconder caraterísticas que à primeira vista não existem e podem, a prazo, alterar profundamente os pressupostos iniciais de um plano que parecia ter tudo para ser bom.

O que de qualquer modo não é bom – e nisso as críticas tendem a ser convergentes – é o tempo, o muito tempo, que tudo isto está a demorar. Arranjar 7.500 milhões de euros não é coisa que se afigure fácil, mas a verdade é que o plano comum já falhou o seu auxílio ao confinamento tornado obrigatório pela primeira vaga da pandemia, falhou o auxílio ao desconfinamento e arrisca falhar a segunda vaga (se houver uma dentro de pouco tempo).

De qualquer modo, e se, como tudo indica, for possível um encontro de vontades para que o fundo de recuperação venha mesmo a ser criado, passará a haver no seio da União Europeia um antes e um depois do fundo.

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