O processo de transferência do Infarmed para o Porto é elucidativo de como ainda se faz política em Portugal, com voluntarismo, sem analisar questões concretas, ao sabor do soundbite, tratando os cidadãos como gente estúpida e o país como uma coutada.

Todos nos lembramos como tudo isto nasceu, na sequência do Brexit, com os países da União Europeia disputando a herança da Grã-Bretanha como milhafres. A carcaça em questão chamava-se Agência Europeia do Medicamento (EMA, na sigla de língua inglesa). António Costa quis candidatar Lisboa, que já tem instaladas duas outras agências europeias. Rui Moreira achou demais, protestou e o Porto acabou por ser a cidade portuguesa apresentada. Entraram, então, em jogo as 28 diplomacias para as negociatas e traficâncias habituais na alta política internacional.

A candidatura do Porto, após quatro meses, ficou pelo caminho. A ‘taluda’, por sorteio final entre Amesterdão e Milão, cidades que estavam empatadas, sorriu à Holanda. Ponto final.

Num país normal, a coisa ficaria por aqui. Candidaturas há muitas. Mas não. António Costa, talvez com o peso na consciência de por aquela altura também ter andado a negociar a liderança do Eurogrupo para Mário Centeno – que, essa sim, a diplomacia nacional ganhou – decidiu atribuir um prémio de consolação ao Porto. Agarrou no Infarmed, que é o parceiro nacional da EMA e, em poucas horas, cá vai disto: para o Porto e a galope!

É dessa altura o vídeo em que António Costa, no Parlamento, levanta a voz a Hugo Soares, então líder parlamentar do PSD, perguntando-lhe, após várias reafirmações, o que é que o coitado não percebia: “sim!”, o Infarmed iria para o Porto! Vistos hoje, são segundos de uma vergonha política que enfraquecem o líder do Governo. Perdão: enfraqueceriam numa outra Democracia – que, por aqui, sinceramente, já não tenho a certeza disso.

A política tornou-se num carnaval que pouca gente segue. E mesmo entre esses, uns do partido e outros acumulando com a seita, aplaude-se sempre ‘o nosso’ sem vestígio de espírito crítico ou independência intelectual.

Mergulhado neste caldo cultural, o Governo decidiu fazer o anúncio solene sem cuidar de saber o que estava a prometer. Sem mandar estudar a questão. Sem apurar das implicações. Sem atender aos direitos dos trabalhadores. Sem medir a força do poderoso lóbi do medicamento. Tudo somado chegamos a mais uma vergonha.

O Governo retira a decisão com a ligeireza de um bêbado numa feira. E, para disfarçar a indignidade, atira com uma hipotética decisão final para a responsabilidade de uma comissão que vai andar para aí a estudar a descentralização que também nenhum lóbi pretende. João Cravinho está lá para, com o seu nome, credibilizar mais essa mentira que há-de avançar à velocidade de uma corrida de caracóis. Assim se tenta sacudir a responsabilidade do capote.

E é isto o Governo que temos da política que merecemos. Imaginar que a apreciação de outros dossiês, como o da nomeação da nova PGR, por exemplo, possa ter obedecido a princípios e a convicções, a uma decisão apurada pela reflexão, pelo interesse nacional e não por interesses particulares, torna-se uma outra impossibilidade que decorre deste quadro geral. Não escrevo mais sobre este outro assunto porque estou elucidado – até sobre a sintonia que existe entre um governo dito de esquerda e a vontade popular. Perdão, neste caso, a vontade do “populismo”. Pois claro. Estamos conversados.