A sociedade portuguesa tem várias guardas pretorianas. Na atualidade, uma delas milita no combate pela chamada igualdade de género e já está a entrar pela escola dentro, primeiro ocupando a sala de aula, agora abrindo a porta das casas de banho. Uma das outras julga-se uma força avançada da Democracia e dedica-se à caça de fascistas, entre os quais estará até identificado o socialista presidente da Câmara da Santa  Comba Dão, vila onde se projeta um museu dedicado a Salazar, filho da terra.

Algumas das guardas vigilantes, e provavelmente estas duas, oxigenam-se mutuamente. Em Portugal, 45 anos depois de Abril, a Democracia ou não tem nada que fazer ou cristalizou bolhas de intolerância.

Confesso-me preocupado e receoso.

Basta abrir um livro de História para perceber que a intolerância reiterada e sistémica de minorias organizadas é a ignição perfeita para fenómenos de reação em massa. O populismo – e quem detestar livros tem aí os simples telejornais para ver com a devida atenção – fermenta nessa intolerância militante, vanguardista nas palavras e profundamente reacionária nos atos.

Deixo a batalha da ideologia de género para outra altura, quando decidir admirar a persistência com que o Bloco de Esquerda, contaminando a restante esquerda e o PS em particular, prossegue a tentativa de minar os alicerces da sociedade que quer destruída para inventar, em Portugal, o homem novo que o comunismo falhou no século XX, no mundo inteiro. Detenho-me, antes, sobre o histerismo à volta do museu Salazar, que ainda ninguém sabe sequer o que seja – mas a mim não me sugere qualquer receio.

Explico porquê.

Se for para mostrar os fatos puídos e conservados do senhor, as fotografias da cadeira da qual o provinciano ditador caiu, as cartas que escrevia às senhoras que depois o visitavam, o avental da sua Maria mais particular ou qualquer outro artefacto do Portugal bolorento de que ele foi o principal expoente, até acho bem. A época merece ser registada, revisitada ou conhecida por esse lado íntimo. Sou, até, capaz de sugerir algumas ideias, de caráter mais público e complementar, como a criação de um itinerário que conduza à campa no cemitério e a venda de bilhetes para um espetáculo (podia chamar-se ‘ballet rose’, por exemplo) que celebrasse a época num teatro local.

Ou seja, o Museu Salazar, para um democrata convicto, é a oportunidade ideal para testar convicções. E se em Nova Deli há um museu dedicado a casas de banho, se em Reikjavique há outro dedicado a pénis de mamíferos, terrestres e marinhos, porque não há-de Santa Comba Dão, terra do interior e necessitada de atrair turismo, de abrir um espaço de eterna saudade a Salazar?

E se (o dito museu) for para fazer a apologia do fascismo, como sugerem alguns fósseis que animam um abaixo-assinado que para aí corre, então é que a coisa se tornaria fácil: seria só aplicar o espírito que decorre da Constituição em vigor. Nada mais simples.

A sociedade portuguesa tem problemas complexos, e nestes avulta a corrupção instalada no Estado, desenvolvida nos partidos que a dominam e que, chegados ao governo, negam à Justiça os devidos meios para investigar com competência. Defender a Democracia não é fingir preocupação com o fantasma de Salazar e o museu de Santa Comba Dão. Defender a Democracia seria zelar por uma economia livre dos ladrões que parecem organizados em quadrilhas. Para isso, proponho também um museu dedicado à corrupção, que dispensaria o correlativo abaixo-assinado de democratas úteis. Material não falta. Nem personagens.