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História dos dois atentados a que João Paulo II sobreviveu

O Papa de Fátima sofreu um atentado a 13 de Maio de 1981. Sobreviveu. Um ano depois, na Cova da Iria, quando se preparava para agradecer a salvação, sofreu outro atentado. Voltou a sobreviver.
12 Maio 2017, 19h09

A morte violenta de Papas é uma espécie de epidemia que grassa no interior da igreja católica apostólica romana desde praticamente a sua elevação a doutrina oficial de Estado (313, durante o consulado do imperador Constantino). Ao longo de quase dois mil anos de história foram vários, de entre os 268 homens que já assumiram o cargo, os que foram assassinados, ora por forças do interior da própria igreja, ora por opositores externos.

Na história contemporânea, essa barbárie medieval – que atingia todos os domínios da vida humana – praticamente desapareceu (se bem que haja ainda quem afirme que João Paulo I foi assassinado por vasculhar no interior da sua própria corte e a instituição bancária que lhe estava associada).

As duas tentativas de assassinato sofridas pelo Papa João Paulo II são, por isso, um caso sério dentro da história da igreja católica apostólica romana, mas os seus contornos apontam para a repetição de um enredo que não é novo – ou, pelo menos, é o que parece suceder com a primeira tentativa, dado que a segunda carece de explicações lógicas.

Primeira tentativa

João Paulo II foi baleado em 13 de maio de 1981, uma quarta-feira, na Praça de São Pedro, no Vaticano, por um turco chamado Mehmet Ali Agca – o que apontava para uma espécie de ‘vendeta’ otomana perpetrada 60 anos depois do fim do império turco. A evidente falta de motivação de semelhante ato tornou imperiosa uma investigação aprofundada e aquilo que foi apurado – e nunca admitido da parte de quem foi isolado como o autor intelectual do atentado – parece bastante mais claro.

Ali Agca parece ter sido alguém que não foi muito mais que um bandido a soldo, tendo sido condenado por outros crimes praticados antes da tentativa de assassínio de João Paulo II: por assalto a um banco e pela morte de um jornalista, ambos na década de 70 do século passado.

A investigação apurou que Ali Agca terá sido contratado pelos serviços secretos búlgaros para assassinar o Papa – e os serviços secretos búlgaros terão sido incumbidos dessa tarefa pelos serviços secretos soviéticos (não confundir com o KGB). Esta teia de sucessivos patamares teria como finalidade estender uma cortina de fumo sobre a ocorrência, na tentativa de ilibar os verdadeiros autores do atentado.

Este enredo já colhe maior objetividade, dado que João Paulo II foi inegavelmente um dos líderes ocidentais que mais determinantemente contribuiu para o afundamento da União Soviética enquanto sustentáculo do mundo comunista. O envolvimento profundo de João Paulo II com o seu compatriota Lech Walesa – criador e impulsionados do sindicato Solidariedade – foi um dos pilares da derrota dos países da cortina de ferro, que começou poucos anos depois do atentado, espalhando-se por todo o mundo eslavo até se consubstanciar na queda do muro de Berlim.

O turco que segurava a pistola (uma semi-automática Browning de nove milímetros) foi imediatamente preso – enquanto João Paulo II seguia para um hospital esvaindo-se em sangue, depois de sofrer uma enorme hemorragia como resultado das duas balas que lhe perfuraram a pele. Os médicos da Policlínica Gemelli (da Faculdade de Medicina e Cirurgia da Universidade Católica de Roma) salvaram o Papa ao fim de uma operação cirúrgica que demorou mais de cinco horas.

O cirurgião português Eduardo Barroso costuma dizer com ironia que, se um doente é salvo, é graças da Deus, se morre, a culpa é do médico. Mas não foi esse o entendimento de João Paulo II: achando-se tocado pela graça divina por não ter morrido de um ataque tão devastador num aniversário das aparições da Cova da Iria, o Papa veio a Fátima um ano depois, para agradecer o benefício.

Ali Agca passou 19 anos nas prisões italianas. Em Dezembro de 1983, João Paulo II – que conseguiria a comutação da pena de prisão perpétua – visitou-o na cadeia, onde passou cerca de 20 minutos em conversa privada. Uma das balas que o atingiu foi depositada na coroa da estátua da Virgem Maria existente em Fátima, onde ainda estará.

Segunda tentativa

Por pouco João Paulo II não tinha tempo para nenhum agradecimento: em 12 de Maio de 1982, na Cova da Iria e em direto para todo o mundo, o padre espanhol Juan Maria Fernandez y Krohn atentou contra a vida do Papa, usando uma faca.

Preso na altura, o antigo membro das juventudes falangitas – que apoiavam com fervor o ditador espanhol Francisco Franco – viria a afirmar em julgamento que considerava João Paulo II um defensor encarniçado das “traições” perpetradas pelo Concílio do Vaticano II (o que não é verdade) e um agente de Moscovo (o que também não é verdade, nem nos delírios mais alucinados). O que ficou claro é que Fernandez y Krohn era na altura, ou chegara a ser, aderente de uma fação desavinda da igreja católica protagonizada pelo cardeal Marcel Lefevre – um personagem enigmático que vogava aparentemente entre o santo e o louco, em que o Vaticano (ou a igreja católica) foi aliás pródigo. Uma espécie de Savonarola dos tempos modernos. Savonarola acabaria morto por ordem do Papa Alexandre VI, bem conhecido dos portugueses por ter assinado o Tratado de Tordesilhas e do resto do mundo por ostentar no nome Borgia – mas os tempos modernos não permitiam tanto.

O cardeal Lefevre tinha ganho o estatuto de estrela (ou anti-estrela) mundial quando, ainda durante o Papado de Paulo VI, recusou aceitar aquilo que considerava serem modernismos perigosos, quer ao nível do catecismo e das práticas religiosas, quer da gestão da igreja. Tentou o cisma, recusou submeter-se e chegou a liderar uma espécie de igreja paralela consubstanciada na Fraternidade Sacerdotal de São Pio X – que ainda hoje existe mas não tem envolvimento mediático.

Mas a conexão entre o atentado e o Cardeal Levefre não fazia qualquer sentido e as autoridades portuguesas parecem ter fiado convencidas que o padre agia por iniciativa própria. Foi condenado a seis anos de prisão, mas só cumpriria três, depois dos quais seguiu para a Bélgica; desistiu de ser padre, passou a ser perito em arte e literatura moderna espanhola (o que parece apontar para algum desarranjo psicológico) e chegou a viver, já depois do ano 2000, no seu país de origem – onde possivelmente continua.

A violência não deixou de ser uma marca da vida do homem sobre a terra. E não será por acaso que tantas entidades falam repetidamente na eventualidade de o Papa Francisco poder vir a sofrer um atentado. Ele próprio por diversas vezes parece estar convencido disso: a revolução paga-se muitas vezes, demasiadas vezes, com a vida.

 

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