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Ilan Pappé: “Israel não é uma democracia, isso é um mito”

A polémica lei que consagra Israel como nação judaica, “lar nacional” do povo judaico e o hebraico como única língua oficial, reforça o que o historiador israelita Ilan Pappé defende há muito: o governo israelita tem vindo a mudar o sistema para tomar decisões sem os problemas inerentes a um regime democrático.
7 Agosto 2018, 09h50

Ilan Pappé tem-se assumido como defensor dos direitos palestinianos e promotor de uma nova forma de contar a história do conflito que opõe israelitas e palestinianos. Hoje, como sempre, defende que a solução passa por construir um Estado democrático para todos.

Conversámos com o historiador israelita na sua passagem por Lisboa, no âmbito da conferência “Beyond Planetary Apartheid”, no ISCTE. Criticado em Israel por não defender o “inalienável direito do povo judeu à terra prometida”, foi proibido de dar aulas na Universidade de Haifa, sua terra natal. Em 2006 muda-se para Inglaterra e prossegue a sua carreira académica na Universidade de Exeter, onde é professor e diretor do Centro Europeu de Estudos sobre a Palestina. Ilan Pappé pugna pela criação de um Estado único, binacional, de essência humanista e não nacionalista, religiosa ou étnica. É autor de dezenas de obras sobre a região, entre elas “A limpeza étnica da Palestina”, onde analisa o processo de independência de Israel (1948).

O Knesset [parlamento] aprovou uma emenda à Lei Básica de Israel que permite entrar em guerra sem o quórum da coligação. Uma das cláusulas autoriza o PM e o ministro da Defesa a declarar guerra sem a aprovação do Governo, em “circunstâncias extremas”. O que se segue?

O Parlamento apoia Benjamin Netanyahu incondicionalmente. Essa lei não é necessária. Netanyahu pode entrar em guerra com quem quiser, quando quiser. Israel é pródigo em farsas. As pessoas levam demasiado a sério este tipo de mudanças. Continuam a discutir se Israel é, ou não, uma verdadeira democracia. Ora, isso é um mito! Israel não é uma democracia, nem sequer é um Estado com um exército – é um exército com um Estado. É o exército que controla Israel, por isso, se quiser entrar em guerra, pura e simplesmente entra em guerra. O ‘jogo da democracia’ é pouco importante para eles. A diferença entre Netanyahu e o Partido Trabalhista é que este quer que o mundo acredite que Israel é uma democracia. Quem sabe também eles gostariam de acreditar nisso, daí tentarem ocultar o lado não democrático de Israel. Netanyahu e os partidos de direita não veem a democracia como algo importante, não acham que tenha trazido quaisquer dividendos a Israel, por isso estão a mudar o sistema, para que seja ainda mais fácil tomar decisões sem os problemas inerentes a um regime democrático.

Desde sempre que defende a criação de um Estado único, assente em direitos iguais para todos como solução para o conflito.

Desde o início da ‘questão palestiniana’, chamemos-lhe assim, que estamos perante um projeto de colonização e não de ocupação da Palestina. Desde a Comissão Peel, em 1938, passando pela solução apresentada pelas Nações Unidas em 1947, que o movimento sionista propôs a partição da Palestina como sendo a melhor solução. E depois de 1967, esse tornou-se o principal pilar do chamado processo de paz. Os palestinianos, por seu lado, criaram um movimento de libertação anticolonialista. Ora, para um movimento desta natureza, aceitar a partição do território não é mais do que um contra-senso. Não se pode querer libertar um território aceitando libertar apenas 20%, por exemplo. Logo, a partição nunca foi uma ideia palestiniana; foi uma ideia que emanou do movimento sionista e que depois foi adotada pelos líderes israelitas. Na perspetiva do mundo ocidental, a solução de dois estados faz sentido. Porquê? Porque é uma solução em que as duas partes são responsabilizadas e cada uma fica com uma parte do território. Do ponto de vista negocial, é a solução mais fácil de aceitar, digamos assim.

Surpreende-o que nada tenha mudado?

Não, não me surpreende que, volvidos 70 anos sobre a apresentação desta proposta pelas Nações Unidas, nada tenha mudado. É verdade que muitas pessoas se perguntam por que razão é que esta solução não funciona, mas se fizer a mesma pergunta aos israelitas, a resposta será: porque os palestinianos não são flexíveis, são árabes, são muçulmanos, não gostam da ideia de paz… Se fizer a mesma pergunta aos governos ocidentais, dirão: estamos na iminência de chegar a uma solução, o que precisamos é de uma melhor mediação, de melhores negociações. Prevalece a ideia que estamos quase lá, mas, por alguma razão, ainda falta o ‘quase’. O que eu e muitas outras pessoas dizemos há já muito tempo é que não está a funcionar porque não é relevante para a realidade que se vive no terreno. Os palestinianos não vivem apenas na Margem Ocidental e na Faixa de Gaza. Há três aspetos a ter em consideração. Primeiro, não se pode resolver o problema olhando apenas para uma parte dos palestinianos, uma vez que essa perspetiva não contempla os refugiados palestinianos nem aqueles que vivem em Israel. Segundo, a Margem Ocidental e a Faixa de Gaza correspondem apenas a 22% da Palestina, logo, para resolver o problema é preciso olhar para toda a Palestina. Terceiro, não basta discutir onde seria a fronteira, qual o grau de soberania que o Estado palestiniano teria e por aí diante. O problema é que, do ponto de vista da parte que tem mais poder – Israel –, e à imagem de todos os movimentos coloniais, o objetivo é ficar com o máximo território possível e com o menor número de pessoas [que nele habitem] possível. Quando se aceita uma solução de partição por não se ter o poder para ficar com todo o território e para se livrar de toda a gente que aí vive, então, não estamos perante uma base que permita delinear um plano de paz, mas sim perante um projeto colonial puro e duro.

Que favorece apenas uma das partes…

Exatamente. Aliás, desde 1967 que o debate central na sociedade israelita é: como podemos ter o bolo e comê-lo. Os partidos da direita israelita dizem que são eles que têm de governar o território e, se for preciso, criar leis para a anexação de território, e até colocam a demografia em segundo plano; enquanto a esquerda israelita afirma que dominar todo o território significa que, demograficamente, os judeus poderão estar em minoria. Ao que a direita contrapõe que é possível dominar o território não concedendo direitos iguais aos palestinianos – a verdade é que há muito tempo que existe um regime de apartheid – ou obrigando-os a sair.

A pressão económica é outro instrumento que está a ser usado para levar a cabo uma transferência silenciosa. Muitos palestinianos são obrigados a procurar casa a preços mais baixos em áreas exteriores ao muro, por exemplo.

Sim, mas a diferença está no facto de a direita israelita assumir que quer controlar todo o território, independentemente de quem o habita, mesmo que isso implique retirar-lhes todos os direitos. A esquerda israelita, que apoia a solução de dois Estados e que mantém relações privilegiadas com a comunidade internacional, a UE e a Autoridade Palestiniana, defende outra abordagem: devemos abdicar de parte do território para que os judeus possam ser a maioria. É nesta premissa que assenta a solução de dois Estados. Mas quando dizem que é melhor abdicar de parte do território, não estão a dizer que aceitam ou reconhecem a existência de um Estado palestiniano. No fundo, estão a dizer que não precisam de controlar os palestinianos de uma forma direta, à imagem do que acontecia na África do Sul durante o regime do apartheid.

Regressando à solução de um Estado único.

Antes de mais, a solução de dois Estados não é relevante, porque o problema não é saber onde se localizará o estado palestiniano ou que tipo de soberania teria. Do ponto de vista da solução de um Estado, o problema está na ideologia sionista. Nos últimos 70 anos, a comunidade internacional, incluindo a União Europeia, aceitou a existência de um Estado judeu racista, uma sociedade étnica e socialmente dividida. Mais. Chama a esse mesmo Estado racista ‘a única democracia do Médio Oriente’! Se disser aos europeus que se trata de um Estado racista, eles respondem que é assim porque não há paz e que, no momento em que houver dois Estados, os direitos democráticos serão repostos. Isto é ridículo, porque Israel jamais deixaria de ser um Estado racista, quer controlasse 80% ou toda a Palestina. Pouco importa, porque a solução de dois Estados não vai alterar nada disto, vai, isso sim, agravar ainda mais o problema da desumanização – a essência de um regime colonialista, racista e assente no apartheid e na expropriação.

Em que termos se pode então traçar um verdadeiro processo de paz?

Se um acordo de paz for um processo que permite a Israel – e foi essa a ideia [dos acordos] de Oslo – controlar mais facilmente os palestinianos, que passa por ceder algum controlo à Autoridade Palestiniana e dar-lhe alguma autonomia, ou, se necessário, retirar-se da Faixa de Gaza, isto não é mais do que uma forma alternativa de Israel controlar a Palestina e os palestinianos. E nem sequer é uma questão de direita ou de esquerda. Os israelitas continuariam a fazer o que têm feito desde 1948, que é aprofundar o seu controlo sobre o território e tentar encontrar novas formas, e mais sofisticadas, de se verem livres das pessoas. Um amigo meu costuma dizer que Israel tem três problemas: primeiro, havia palestinianos; segundo,  palestinianos; terceiro, haverá sempre palestinianos. Esse é o principal problema para Israel, muito devido à ideologia do Estado. Sem uma mudança de mentalidade, nunca haverá paz nem reconciliação.

Nesse caso, quais são os argumentos usados pelos palestinianos que apoiam a solução de dois Estados?

Tenho amigos palestinianos que concordam com essa solução e que dizem que querem um Estado palestiniano na Margem Ocidental e na Faixa de Gaza. E eu digo-lhes: no fundo, vocês querem que Israel seja uma verdadeira democracia e que a Palestina, não podendo ser um estado democrático, seja pelo menos um estado independente. E pergunto: não seria melhor trabalharmos em prol de um Estado democrático para todos?

Os palestinianos na Faixa de Gaza, que não tem ligação física, territorial, com a Margem Ocidental também pensam assim?

Não creio. A maior parte dos palestinianos que apoiam a solução de dois Estados vive na Margem Ocidental. E diria que apoiam a solução de dois Estados porque acreditam, ilusoriamente, que o exército israelita sairia se essa solução fosse implementada. Mentira! Isso nunca iria acontecer. A opressão militar israelita dura há 70 anos e eles querem acreditar que a criação de dois Estados pode pôr fim ao que eles chamam de “ocupação militar”. Estão redondamente enganados.

Os EUA transferiram a embaixada para Jerusalém. Que repercussões é que isso pode ter?

Há um aspeto muito importante. Todos os que acreditam na solução de dois Estados – desde Mahmoud Abbas aos trabalhistas israelitas, passando pela União Europeia e pelos Democratas nos EUA –, acreditam que só os americanos é que conseguirão a paz. Chamemos-lhe a pax americana. Ora, Trump anunciou que os EUA não vão fazer isso, que não estão minimamente interessados na paz. O que os EUA vão fazer é apoiar Israel, incondicionalmente. Confesso que tenho curiosidade em perceber como é que os palestinianos que advogam a solução de dois Estados vão continuar a defender essa ideia, sabendo agora que já não têm o apoio de Washington.

Trump pôs fim a essa ilusão?

Temos de ser justos para com Trump. Desde 1994 que todos os presidentes norte-americanos prometeram mudar a embaixada para Jerusalém, mas nenhum cumpriu. Quando toda a gente diz que Trump é louco ao fazer isso, eu lembro que a diferença entre ele e os seus antecessores é que ele cumpre o que prometeu na campanha eleitoral. Trump não entra nesse jogo. Se os EUA defendem que Jerusalém é a capital de Israel, então é lá que tem de estar a embaixada americana. É uma questão de personalidade e é por isso que consegue aquilo que mais ninguém conseguiu, como no caso da Coreia do Norte. E como não é um homem particularmente inteligente, não gosta de ‘joguinhos’. E isto aplica-se a outras coisas, como quando fala de mulheres, dos afro-americanos ou de pessoas com deficiência. É assumidamente misógino, chauvinista, racista. Mas há um preço a pagar quando alguém diz e faz exatamente aquilo que pensa.

Na sua opinião, há alguma razão em particular para o Ocidente considerar a Autoridade Palestiniana como a única força política palestiniana legítima?

Diria que o problema são os palestinianos e não propriamente o Ocidente. Sou o primeiro a reconhecer o seu sofrimento e o quão difícil é [as diferentes fações] entenderem-se entre si. Mas isso tem de mudar, os palestinianos têm de agir em conjunto. E têm também de definir de forma muito clara o que querem dizer com a libertação da Palestina hoje, em 2018. Têm de falar a uma só voz, pois só assim poderão ter uma voz forte e fazer-se ouvir. Enquanto houver vozes contrárias, enquanto uns defenderem a solução de dois Estados, outros apoiarem o Hamas e outros a Fatah, e outros pugnarem pela solução de um Estado, nada mudará. A comunidade internacional terá grande dificuldade em apoiar uma ideia que venha de um ou de outro lado, terá de partir de dentro, terá de emanar dos palestinianos e refletir o que a sociedade palestiniana quer, no seu conjunto.

Em Israel, a linha dura acaba sempre por prevalecer e por atuar com o beneplácito dos governos  e media ocidentais.

O problema é que, em Israel, todos os partidos políticos têm a mesma ideologia. E ainda que se mudasse o sistema político, o resultado seria exatamente o mesmo. Ser um sionista de esquerda ou um sionista liberal ou um sionista socialista é o mesmo que ser um liberal racista ou um socialista racista. Salvo raríssimas exceções e, claro, salvo os cidadãos palestinianos, todos pensam da mesma maneira em termos ideológicos. E em relação ao Ocidente, tem tudo a ver com a excecionalidade de que goza Israel. Todo o debate em torno do Médio Oriente trata Israel como sendo uma exceção: Israel não viola os direitos humanos, Israel não discrimina os seus cidadãos, Israel não é um Estado racista. As elites políticas do mundo ocidental decidiram tolerar tudo isto, cada uma pelas suas razões, e acabam por proteger e dar cobertura a Israel. Quando o exército israelita mata um jornalista palestiniano, a informação não é tratada da mesma maneira que a morte de um jornalista ocidental pelo Daesh, por exemplo. Ninguém fala nisso, ninguém admite, mas o tratamento dado não é o mesmo.

Os jovens israelitas poderão, num futuro próximo, contribuir para uma mudança de mentalidade?

Diria que a esperança reside nas novas gerações. Alguns jovens israelitas não querem ir para o exército, não querem cumprir o serviço militar obrigatório. É por aí que as coisas podem começar. Ainda é um pequeno grupo, mas significativo, e está a crescer. O que significa que os jovens serão o maior problema de Israel. Os adolescentes de hoje sabem o suficiente sobre o mundo para dizer: “o que estamos a fazer não é normal”. Mas ainda é muito cedo para começarmos a ver alguma mudança a ganhar corpo. Retomando o que disse antes, seria importante que os palestinianos definissem a sua posição de uma forma mais objetiva, porque isso também ajudaria estes jovens israelitas a ter uma visão mais clara do futuro.

Aparentemente, as novas gerações de palestinianos não se identificam com a Fatah nem com o Hamas e querem novas forças políticas e instituições que lutem pela libertação da Palestina, usando novas abordagens e uma linguagem do século XXI. Acha que estão a emergir alternativas?

Isso é verdade, mas é difícil dizer que há alternativas a ganhar forma neste momento. Um pouco como aconteceu com a Primavera Árabe, em que as gerações mais jovens tiveram boas ideias, mas não estavam dispostas a construir novas instituições. No fundo, nunca confiaram no poder dos partidos, das organizações e das instituições. Infelizmente, sem instituições não é possível pôr de pé e levar por diante novas ideias. Não basta ter uma boa ideia, é preciso um veículo, uma instituição para pô-la em prática. Creio que têm duas opções: ou usam as instituições existentes e mudam-nas a partir de dentro, ou criam novas instituições. Diria que alguns já estão a ponderar estas duas opções, mas ainda é demasiado cedo para podermos dizer se vão, ou não, ser bem-sucedidos. Mas estou convencido de que este é o momento certo para criar algo novo.

(Entrevista publicada no caderno Et Cetera a 18 de maio de 2018)
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