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Kamala Harris: uma radical para acompanhar um conservador

A escolha de Joe Biden serve para fazer a ponte entre as alas da esquerda e da direita do Partido Democrata – afinal, o mesmo que fez o próprio Biden durante 12 anos junto de Barack Obama. No Twitter, Donald Trump já lançou esse estigma.
12 Agosto 2020, 17h40

O ano de 2019 tinha apenas começado quando a senadora da Califórnia Kamala Harris decidiu que já era tempo de alegrar muitos corações democratas e assumir aquilo que já todos sabiam que iria acontecer mais cedo ou mais tarde: a candidatura à presidência dos Estados Unidos, através de uma oposição feroz contra a recandidatura de Donald Trump. O Dia de Martin Luther King (21 de janeiro) e um comício em Oakland era a altura certa e culminaria um período de grande exposição mediática, com entrevistas televisivas, eventos de diversa índole e uma breve tournée para promover o seu livro ‘As verdades que carregamos: uma jornada americana’. Não correu tudo desta forma, mas fica a intenção.

Tudo isso se demoronou quando, uns 11 meses depois, a senadora anunciou que desistia da candidatura, alegadamente por falta de apoio financeiro – com a sua entourage a não conseguir angariar a verba necessária para continuar na corrida. De algum modo, foi a ‘fação’ Obama dentro do Partido Democrata que ficou órfã: Kamala assumia-se como uma espécie de sucesso do antigo presidente, não só por ter o mesmo tom de pele, mas também porque era há muito um dos baluartes do lado mais esquerdo (se é que há um) dos democratas.

A posterior evolução do renhido despique para a nomeação democrata acabaria por determinar que a fação mais à direita e liberal do partido acabaria por impor-se: Joe Biden, vice de Obama, foi sempre bem mais conservador que o ‘seu’ presidente e o lugar que ocupou na administração pretendia exatamente fazer a ponte entre os dois lados dos democratas.

Foi por isso com nenhuma estranhesa que Kamala Harris não foi das primeiras nem das segundas a enfileirar pelo apoio a Biden quando o seu oponente, Bernie Sanders, decidu desistir da corrida. Ficava claro que a ala esquerda dos democratas estava definitivamente sem representação, e foi preciso que o próprio Barack Obama viesse a público apoiar o seu ex-vice para os seus seguidores mais próximos perceberem que estava chegada a hora de apoiar um homem em relação ao qual tinham muitas dúvidas.

É neste quadro que Kamala Harris será para Joe Bidem aquilo que ele próprio foi para Obama: uma ponte entre as duas alas do partido – que têm um historial pontificado por várias discordâncias e mesmo algumas posições opostas em relação a temas importantes (o aborto, as minorias, a imigração, as armas), que colocam a ala à direita dos democratas bem mais próxima dos republicanos que da ala esquerda do próprio partido (Biden é um dos exemplos). Sobre todos esses temas, Kamala Harris tem atrás de si um historial que não deixa dúvidas, sendo uma das claras provas disso o enorme ‘ódio’ que separa a senadora da National Rifle Association (NRA) – que por estes dias espá a ser investigada por fraude e branqueamento de dinheiro.

Mas Kamala é mais que isso. Pelo menos desde maio de 2019 que os membros seniores do partido vêm dizendo que uma aliança Biden-Harris seria uma combinação ideal para derrotar Donald Trump e Mike Pence. No início de março passado, várias vozes democratas sugeriram que Biden escolhesse uma mulher negra como companheira de ‘aventura’, observando que “as mulheres afro-americanas precisavam de ser recompensadas pela sua lealdade”. De imediato Biden comprometeu-se a escolher uma mulher para a vice-presidência  e em 17 de abril deste ano, Harris respondeu às especulações que a davam como a escolha de Bidem dizendo que “ficaria honrada” em ser a escolhida. A morte de George Floyd depois de sofrer brutalidade policial e os protestos que se lhe seguiram tornaram a escolha ainda mais óbvia – apesar de fazer parte de um grupo mais alargado, onde constavam também Elizabeth Warren, outra ex-candidata das primárias democratas, a ex-polícia Val Demings e a governadora de Atalanta Keisha Lance Bottoms.

Donald Trump, que há de conhecer bem esta geometria, reagiu de imediato à nomeação de Kamala Harris para a vice presidência escrevendo no Twitter que “Kamala Harris fez campanha para se tornar presidente correndo para os braços da esquerda radical”. A reação era mais que esperada, mas é bem capaz de afugentar alguns indecisos que nunca gostaram de Trump mas estão longe de se rever no liberalismo com que os democratas encaram, por exemplo, a imigração.

Contrariamente, Obama já disse (também no Twitter) que o candidato democrata “acertou em cheio com esta decisão” e que “Joe tem agora uma companheira ideal para ajudá-lo a abordar os desafios reais que os Estados Unidos enfrentam”.

Em hora de unanimidades democrata – ou mesmo de algum unanimismo um pouco maçador – não há para já qualquer voz (autorizada) discordante: a ex-candidata presidencial democrata Hillary Clinton disse estar “emocionada em dar as boas-vindas a Kamala Harris para uma candidatura democrata histórica, ela já demonstrou ser uma líder incrível, e sei que será uma parceira forte para Joe Biden”, enquanto Bernie Sanders afirmou que “ela entende o que é necessário para defender os trabalhadores, lutar por atendimento médico universal e derrubar o governo mais corrupto da história. Vamos pôr mãos à obra e vencer.”

 

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