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Ken Hughes: “A IA não é o futuro, mas sim o presente silencioso”

Ken Hughes, um dos maiores especialistas mundiais em novas tendências de consumo, veio esta semana ao congresso da Associação Portuguesa de Centros Comerciais. Em entrevista exclusiva ao Jornal Económico, levanta o véu sobre um futuro tão aterrorizador quanto fascinante, com a inteligência artificial a mandar nas compras de casa. O amanhã já cá anda, meio escondido.
16 Junho 2019, 08h00

De que forma é que o seu trabalho pode melhorar a minha vida de consumidor?

No meu trabalho enquanto comportamentalista, foco-me nas necessidades do consumidor e, ao aprender as tendências e as necessidades, ajudo as marcas e os negócios a alterarem a sua abordagem de forma a permanecerem relevantes para os consumidores. A maioria do meu trabalho no negócio corporativo é com marcas que precisam de assegurar que se mantêm relevantes e a par com o que os consumidores querem, algo que está mudar com mais rapidez do que alguma vez antes.

Em termos práticos, quais vão ser, de forma concreta, as grandes necessidades dos consumidores nos próximos anos? Por outras palavras, de acordo com as conclusões a que chegou nas suas investigações, de que forma é que a experiência que temos enquanto seres consumidores vai ser melhorada, mantida ou piorada nos próximos anos?

O próximo passo de mudança no consumismo é a entrada na velocidade de cruzeiro da Inteligência Artificial (IA). A nossa realidade de IA já aqui está. Não é o nosso futuro, mas sim o nosso presente silencioso. Já todos nós deixámos os algoritmos assumirem o controlo. A Netflix diz-nos o que devemos ver, o Facebook diz-nos de quem devemos ser amigos, a Linkedin diz-nos onde devemos trabalhar, a Amazon o que devemos comprar, o Tinder quem devemos amar. Estamos a ser seletivamente empurrados a toda a hora. Mas, no futuro, os assistentes dedicados de IA que passaremos a ter levarão isto para um patamar mais avançado. Irão fazer compras por nós. Tudo começará com os simples produtos de reabastecimento. O papel higiénico e a pasta dentífrica serão alvo de novas encomendas sem a nossa intervenção, conforme as nossas instruções. Depois, passaremos ao início de marcações para as nossas idas ao cabeleiro e dentista, como assuntos de rotina. No espaço de cinco anos poderemos vir a ter uma cultura de consumismo muito diferente, uma que deixará de ter tanta influência do ‘consumidor’ no dia-a-dia. Isso é, ao mesmo tempo, tão aterrorizador como excitante!

Do ponto de vista das grandes marcas e dos retalhistas, quais são as grandes mudanças que prevê que vão surgir?

Não está à vista um ‘Apocalipse do Retalho’, apenas uma ‘Transformação Fantástica’. Negócios que já não conseguem fornecer o que os consumidores precisam ou o canal que é mais relevante estão a sofrer e a falhar. Mas aqueles que conseguem esses objetivos estão a prosperar. Colocar o consumidor no centro é a chave. Olhemos para a Booster Fuel nos Estados Unidos. Durante anos, dirigimo-nos para a estação de combustíveis local para não termos qualquer valor acrescentado, um imposto inútil no nosso tempo para encher o depósito. Agora, pode simplesmente parquear o seu carro junto ao escritório, solicitar que lhe atestem o depósito através de uma app, deixar aberto o tampão do combustível e o camião deles [da Buster Fuel] virá até si (usando dados de localização baseados no GPS e em pagamentos seguros) e desta forma consegue libertar mais tempo para si enquanto consumidor. Por que é que irá usar outra vez uma bomba de gasolina? Acrescente um assistente de IA dedicado a isto (em que o carro irá, ele próprio, agendar esse atestar de depósito para si quando for necessário), e nunca mais vai ter necessidade de pensar em reabastecer a viatura. Esse futuro já aqui está.

As grandes superfícies, centros comerciais e outros espaços de distribuição moderna vão transformar-se numa espécie de circo ou de feira, com múltiplas animações e experiências para os consumidores, em particular para os mais jovens?

‘Retalho Experiencial’ é definitivamente o caminho a seguir. Lojas a funcionarem como armazéns que visita apenas para comprar deixaram de ser relevantes numa altura, em que já posso clicar e receber a encomenda.

Assim, qual será o papel para as lojas [de retalho]?

Sim, deverão fazer ‘sentir’ qualquer coisa, ligar-nos à marca, e as experiências são uma forma de conseguir esse objetivo.

Serão um circo?

Não. Pelo menos, não o deveriam ser. Qualquer experiência deve acrescentar valor, entreter, intrigar, despertar curiosidade ou fazer o consumidor sorrir. Uma experiência pode ser funcional ou emotiva, relacionada com uma novidade ou um produto. Se forem apenas ‘novidades ruidosas’ dentro da loja, então falham o seu objetivo. O ‘Retalho Experiencial’ tem a ver com acrescentar valor sobre o produto/serviço para além das expetativas e com criar uma razão para que a loja exista.

Se o que os consumidores valorizam sempre foi mudando ao longo dos tempos, num fenómeno mais acelerado pela tecnologia das últimas décadas, como podem os players do setor sobreviver?

Sobrevivemos adaptando-nos à mudança, como espécie, e nos negócios. Não sabemos qual será a próxima fonte de forte disrupção. Podemos adivinhar. Provavelmente, veículos autónomos, IA, etc. Mas, bem vistas as coisas, ninguém sabe verdadeiramente o que irá causar disrupção significativa e quando. As impressoras 3D não estão nas nossas casas a imprimir a nossa comida, como foi previsto há cinco anos. A televisão 3D falhou no arranque. Na prática ninguém sabe qual será a próxima disrupção social, cultural e económica. É por isso que chamamos a estes movimentos disrupção! Se soubéssemos o que iriam ser, chamar-lhe-íamos mudança previsível. Enquanto marcas e negócios, tudo o que podemos fazer é estarmos preparados para a mudança. Estarmos preparados para dinamizar o negócio. Temos de estar atentos ao que os consumidores valorizam, ao que veem como relevante. Temos de construir negócios flexíveis e ágeis, assim como indústrias com prazos de entrega mais rápidos para se desenvolverem.

Se a marca não existe, se não houver uma experiência que o consumidor possa contar sobre ela, o que é que isso pode representar quanto à autenticidade do produto, tão valorizada hoje em dia pelos consumidores?

Existe uma maravilhosa frase de Terry Pratchett [autor de livros de fantasia], que é a seguinte: “Um homem não está morto se há alguém que ainda fala do seu nome.” A ideia de que ainda estamos ‘vivos’ se ainda formos alvo de conversa é interessante, e é semelhante para as marcas. Será que existes se ninguém está a falar de ti? Talvez sim, mas apenas como mercadoria [commodity], o que nenhuma marca pretende ser. Para se ser uma grande marca ou negócio devemos ter os nossos consumidores a falar de nós, a partilhar a nossa história, na vida real e nos mundos digitais. Como é que fazemos isso acontecer? Bem, temos de dar-lhes [aos consumidores] uma experiência que lhes proporcione algo para dizer. O hotel no qual pernoitei que imprimiu o meu nome nas garrafas de água mineral e de cerveja no minibar do quarto percebeu isto. Vão mais além nas vossas experiências e as vossas histórias serão partilhadas.

Como é que o facto de a IA caminhar para ser mais inteligente, e mais rápida, do que os seres humanos poderá levar os consumidores a comprarem ainda mais do que hoje o que não querem e, acima de tudo, o que não precisam? Se esse é um risco real, de que forma é que tal cenário se pode conjugar com as crescentes necessidades de respeitar o meio ambiente e os princípios da responsabilidade social?

A IA não é o vilão desta história. Os media adoram sempre aproveitar este medo… “As máquinas estão a tomar o controlo!” Todo o comércio habilitado [pela IA] irá comprar por nós o que necessitamos. Somos nós que definimos os parâmetros. Mas, claro, eles [os agentes de IA] são capazes de aprendizagem da máquina [machine learning], e por isso irão aprender a influenciar-nos, a escolher o tempo para nos mostrar algo que nos irá impulsionar à compra ou quando nos deverão recordar a converter em compraralgo que estamos a considerar. É um futuro perigoso. Também é de referir que o comércio habilitado de IA ocorrerá igualmente entre máquinas e máquinas sem intervenção humana, o que irá gerar alguns cenários interessantes no que respeita a questões de fidelidade. Uma máquina nunca poderá desenvolver lealdade ou ligações emocionais em relação a uma experiência específica de uma marca ou de um logotipo.

De que forma é que a crescente competitividade entre empresas e marcas pela supremacia no domínio da IA poderá trazer, ao nível da experiência de consumidor, vantagens ao ser humano, e não o seu contrário?

Todo o comércio habilitado e apropriado será personalizado. Será construído à volta de si, o consumidor. Irá utilizar os seus dados apenas para sugerir e repor artigos que pretende. A machine learning está a melhorar a cada ano. Já nos encontramos num ponto em que os sistemas podem prever as necessidades melhor do que nós próprios! Como em todas as coisas, tudo o que se tornar escasso tornar-se-á valioso. A interação humana genuína será mais escassa e, portanto, será utilizada para acrescentar mais valor acrescentado pelas marcas mais inteligentes. Este é o ponto certo em que “o silicone encontra a alma”.

Quais são as oportunidades positivas e as ameaças negativas das novas tendências de consumo?

A oportunidade deste novo mundo é o processo de compras sem atritos. Imagine que quer ir esquiar com a sua família. O seu assistente virtual sugere alguns hotéis em algumas estâncias. Escolhe, baseado em diversos fatores que são importantes para si. Talvez seja um quarto familiar com quatro camas, uma estância com facilidades de acesso e de saída em relação às pistas de esqui, ou um hotel com spa incluído, ou um hotel com apartamentos equipados para cozinhar as suas refeições? Ou todas estas coisas. Pense nisso. Ao longo dos anos, o sistema continua a aprender, registando cada uma das opções apresentadas e a escolha assumida. A dada altura, aprende do que é que gosta e deixa de lhe mostrar opções que são contrárias aos seus critérios. Você deposita-lhe cada vez mais confiança. A dada altura, apenas pede ao seu assistente virtual para ‘reservar um hotel de esqui’ e este irá apresentar-lhe um hotel, voos, transfers e reservas de spa. Tudo pronto para se confirmar apenas com um comando de ‘Sim’. E este processo será cada vez mais afinado, até que, a dada altura, deixará o consultar sobre isto! As ameaças? Bem, quanto mais entregamos confiança, menos estamos a participar no processo de decisão do consumidor. Vamos pegar num tema simples, como o papel higiénico almofadado. Precisa de o substituir, por isso solicita ao seu assistente (usando a voz, que será rapidamente o nosso primeiro interface enquanto utilizadores) para encomendar algum. Ele irá vocalizar três opções para si, que escolherá uma (mais uma vez socorrendo-se do que é mais importante para si em termos de ranking – preço, prazos de entrega, etc. Mas, ao contrário, do supermercado, não verá 100 variedades para escolher. Ou as atuais prateleiras digitais da Amazon ou da Google Shopping onde poderão estar disponíveis mil opções. Só lhe serão disponibilizadas três alternativas. Ou duas. Como, enquanto marca, se consegue assegurar que será uma das opções disponibilizadas? É um admirável mundo novo. A pesquisa paga é um fator chave para o sucesso na actualidade. Amanhã, será paga a colocação [placement] de IA?

Em termos visuais, espaciais e físicos, como será o centro comercial do futuro, daqui a cinco ou dez anos, quais serão as grandes mudanças? O que é que eu faço agora que deixarei de fazer? O que é que nunca fiz e vou passar a fazer regularmente?

Locais em que um determinado número de promoções de retalho se podem encontrar em conjunto têm sido tradicionalmente modelos baseados em marketplaces. Esta realidade continuará a persistir, mas as promoções do retalho terão necessidade de mudar com muito mais frequência. As lojas-âncora continuarão a ser importantes, mas espaços de retalho mais fluidos e flexíveis tornar-se-ão mais relevantes. Espaços comerciais pop-up [móveis e temporários] serão um bom teste decisivo para este tema. Os consumidores gostam de coisas que vêm e vão, pois isso acrescenta excitação a uma visita a um espaço comercial. Irão passar a ver cada vez mais elementos de experiências e de entretenimento e talvez passem a ser mais ancorados por isto do que pelo próprio retalho tradicional. Talvez esse retalho tradicional passe a ser a razão secundária para a visita e não a primeira. De facto, passará a ser definitivamente assim. A tecnologia irá desempenhar um papel crescente na personalização da experiência de compras nos centros comerciais, que deixará de passar a ser uma visita universal para todos [os espaços].

De que forma é que avalia o state of the art do setor da distribuição e dos centros comerciais em Portugal face às realidades externas, nomeadamente em relação às outras sociedades ocidentais?

Não tenho experiência suficiente sobre a indústria portuguesa do setor dos centros comerciais para responder a esta questão de uma forma assertiva. Tudo o que posso dizer é que todos os temas de que falei anteriormente são globais. As necessidades dos consumidores mudaram em todo o lado. Isto atravessa culturas e constitui uma mudança comportamental global. Um teenager ou uma rapariga com cerca de 25 anos, seja em Londres, Lisboa ou Los Angeles, todos eles partilham valores comuns no que diz respeito ao que querem comprar.

Portugal, apesar de ser um mercado com fraca expressão numérica, é considerado por especialistas de diversos setores como um dos ‘ideais’ para testar, fazendo experiências-piloto, dada a apetência dos portugueses pela inovação e pelas novidades. Confirma esta tendência no setor da distribuição e de que forma poderá beneficiar as experiências do consumidor português e colocar o nosso país na vanguarda nesta área?

Mais uma vez, não conheço o suficiente sobre o vosso mercado local e cultura de adaptação à novidade para comentar. Mercados mais pequenos são usados frequentemente como mercados de teste devido à capacidade para um retalhista ou marca implementar, quantificar e recolher dados de forma prévia ao desenvolvimento em larga escala [seja de um produto ou serviço] em mercados de maior dimensão. Em geral, o retalho, precisa de melhorar nas áreas de inovação e de risco. Precisa de afiar o lápis no que respeita a tentar novas coisas, dentro da loja (in-store) e com os clientes. Se o mercado português considera que se pode tornar um hub de incubação para inovação no retalho, então apoiarei com toda a certeza esse posicionamento global para atrair investimento no retalho. É a necessidade de aprender no setor do retalho a ‘levantar voo e aumentar a envergadura das nossas asas na descida’.

Artigo originalmente publicado na edição do Jornal Económico nº 1991 de 31 de maio de 2019

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