[weglot_switcher]

“Liderança política é fundamental para a construção de cidades e vilas inteligentes e sustentáveis”

A utilização de ferramentas de inteligência urbana tem uma crescente adoção entre os municípios portugueses e os que a adotaram mostraram ter uma melhor capacidade de resposta à crise pandémica.
25 Abril 2021, 20h00

A pandemia de Covid-19 acelerou a tendência para se encontrarem soluções com recurso à inteligência urbana em Portugal, mas a diferentes velocidades. Em entrevista ao Jornal Económico, Miguel de Castro Neto, subdiretor da NOVA Information Management School (IMS) e coordenador do NOVA Cidade – Urban Analytics Lab, analisa o atual momento, o que foi feito e caminhos que estão a ser seguidos. Fala sobre a necessidade de garantir competências, mas, em primeiro lugar, diz que é necessária liderança política.

 

Qual é o “estado da arte” da gestão inteligente das cidades em Portugal?
A construção da inteligência urbana é um processo. A verdade é que, ao olharmos para os 308 municípios portugueses, constatamos que existem diferentes níveis de maturidade que resultam, na maioria dos casos, das especificidades do próprio território, incluindo o capital humano e, em particular, da liderança política do município, que é fundamental para a construção de cidades e vilas inteligentes e sustentáveis.

Diria que podemos considerar que existem três grandes grupos, com maturidades crescentes: um primeiro grupo que ainda está numa fase de desmaterialização de processos internos e de estabelecimento de canais de interação digitais com o cidadão e as empresas; um segundo grupo – aquele que neste momento revela uma maior dinâmica – que está a investir em soluções inteligentes sectoriais, também chamadas de “verticais”, ou seja, soluções que tiram partido das mais recentes inovações tecnológicas e que permitem otimizar a gestão de serviços e infraestruturas, melhorando a eficiência na utilização de recursos. É, por exemplo, o caso da gestão inteligente de espaços verdes que permite otimizar a rega, ou da gestão inteligente de resíduos sólidos urbanos onde, através da monitorização do nível de enchimento dos contentores, conseguimos otimizar as rotas de recolha.

Por fim, temos o grupo que revela maior sofisticação e que recebe uma atenção crescente, que são aqueles municípios que adotam a visão de cidade como plataforma e onde, cruzando dados de múltiplas fontes e formatos – nomeadamente, sistemas transacionais da autarquia, sensores no espaço urbano e dados fornecidos pelos cidadãos – é possível criar um nível de sofisticação analítica que lhes permite ter uma capacidade de planeamento e gestão integrada e holística da cidade. Isto, porque a grande maioria dos processos implica uma necessidade de análise e intervenção transversal, que a abordagem “vertical” não permite. Nesta visão de cidade como plataforma, as cidades começam por estabelecer capacidades analíticas descritivas – nomeadamente através de centros de coordenação e controlo onde efetuam a gestão operacional da cidade –, lançando assim as bases para irem mais longe e construírem projetos de analítica preditiva com o objetivo de criar a capacidade de prever e adotar uma atitude proativa na governação da cidade. Cruzando estas duas capacidades de análise, descritiva e preditiva, ficam capazes de desenvolver analíticas prescritivas, isto é, avaliar diferentes cenários de ação e adotar políticas proativas que permitam alcançar os objetivos estabelecidos e não o resultado da previsão decorrente da ausência de intervenção.

 

A pandemia alterou os movimentos no sentido da promoção e consolidação de cidades inteligentes?
A pandemia trouxe, de facto, uma maior aposta na designada construção das cidades inteligentes, o que faz todo o sentido. Se as cidades inteligentes assentam na capacidade de gerir serviços e infraestruturas de forma mais eficaz e eficiente – com o objetivo de garantir qualidade de vida a quem vive, trabalha ou visita a cidade –, então é um instrumento inquestionável para o combate que travamos.

Recorde-se, aliás, que as ambições inscritas no Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 11 das Nações Unidas – “Cidades e Comunidades Sustentáveis” – referem precisamente a procura da sustentabilidade, inclusão, segurança e resiliência das cidades. Ora, cidades mais inteligentes asseguram níveis mais elevados de resiliência a fenómenos extremos, como é o caso da pandemia que vivemos.

O que vimos, nos últimos meses, é que aqueles municípios que apresentavam maior maturidade no que toca a inteligência urbana estavam objetivamente mais habilitados para responder, e muitas vezes até antecipar, as necessárias ações de combate e mitigação da Covid-19.

É bom lembrar o papel fundamental que os autarcas e a política local têm desempenhado neste combate. E, neste contexto, não posso deixar de fazer referência a um dos grandes obreiros da inteligência urbana no nosso país, António Almeida Henriques, presidente da Câmara Municipal de Viseu, recentemente falecido vítima de Covid. Foi um dos maiores exemplos no protagonismo dos municípios neste combate, no qual, infelizmente, perdeu a vida. Enquanto vice-presidente da Associação Nacional de Municípios Portugueses, onde coordenava a Secção Municípios “Cidades Inteligentes”, protagonizou inúmeras iniciativas com vista à dinamização das cidades inteligentes e sustentáveis em Portugal.

 

De que forma a inteligência urbana pode ajudar a gerir e a ultrapassar os efeitos da pandemia?
Do ponto de vista da gestão da pandemia, temos municípios, como Cascais, onde a monitorização em tempo real das ocorrências de casos permitiu uma resposta praticamente imediata visando, tanto quanto possível, conter os contágios. Um segundo exemplo consistiu na utilização de soluções de recolha de dados que permitiam monitorizar a densidade de pessoas por unidade de superfície (distanciamento social), com o objetivo de intervir preventivamente, e com o desafio adicional de assegurar, simultaneamente, o respeito pela privacidade, conforme estabelecido no RGPD [Regulamento Geral da Proteção de Dados].

Quanto ao seu papel na recuperação, temos vindo a assistir ao lançamento de várias iniciativas nesse sentido. Destaco, pela sua relevância e dimensão, o apoio dado para a adoção de soluções e plataformas de comércio eletrónico, que têm sido um contributo importante para a manutenção da atividade económica do comércio tradicional e das empresas de territórios de baixa densidade.

No entanto, ainda estamos longe de utilizar a inteligência urbana para responder a um dos maiores desafios do pós-pandemia e que se prende com a mobilidade. A preocupação com a segurança tem provocado uma redução da procura por transportes públicos e uma crescente utilização do automóvel. Efetivamente, existe uma oportunidade para tirar partido da tecnologia para otimizar o cruzamento da oferta e procura de transporte, assegurando o necessário distanciamento social. Como? Mediante a monitorização da carga sobre o sistema em tempo real; a diversificação de meios de transportes, combinando oferta pública e privada; e oferecendo a possibilidade de utilizarmos aplicações de planeamento de viagens; apenas para dar alguns exemplos.

 

Os recursos financeiros de que Portugal disporá nos próximos anos constituem uma oportunidade de investimento para tornar as cidades mais inteligentes?
Quer em sede de Plano de Recuperação e Resiliência, quer no contexto do próximo quadro comunitário de apoio, existem, de facto, inúmeras oportunidades para que as cidades portuguesas possam investir e tornar-se cidades mais inteligentes.

No entanto, julgo que existe uma necessidade inquestionável de existir uma política pública especificamente desenhada para as cidades Inteligentes e sustentáveis – em linha com o que acontece hoje no contexto da União Europeia com o Green Deal ou o Horizonte Europa –, que permita a construção de projetos integrados de inteligência urbana. Esta abordagem holística é fundamental para responder ao enorme desafio que as cidades enfrentam no contexto da emergência climática e da recuperação da pandemia, onde somente em parceria com as autarquias seremos capazes de ter sucesso.

Hoje, está na ordem do dia a ambição de construir a cidade dos 15 minutos: espaços urbanos onde, em 15 minutos, a pé ou de bicicleta, temos acesso aos serviços de que necessitamos no quotidiano, incluindo não só a alimentação, saúde e educação, mas também espaço público e infraestruturas verdes ou cultura. O pós-pandemia seria o momento de disponibilizar um programa de apoio à sua concretização e garantir que a ausência de ruído e automóveis, bem como a melhoria da qualidade do ar, não foram apenas um breve intervalo na realidade das nossas cidades, mas que permanecem e que aproveitamos a oportunidade para construir as cidades do futuro, centradas nas pessoas, hoje.

 

Considera que as cidades inteligentes – ou as áreas urbanas inteligentes – podem contribuir para uma melhor gestão do território e para promover, por exemplo, uma melhor competitividade do interior face ao litoral?
Sem dúvida. A construção de cidades e territórios inteligentes tem um enorme potencial de promoção da eternamente adiada coesão territorial.

De facto, quando observamos o panorama nacional deparamo-nos com uma grande diversidade de autarquias que apostam na inteligência urbana como motor de desenvolvimento económico, social e ambiental e que não se restringem ao litoral e às grandes cidades. É o caso de Viseu, Guimarães, Braga, Fundão ou Bragança, apenas para dar alguns exemplos.

No entanto, não podemos deixar de referir que esta construção da inteligência urbana ou territorial assenta em grande medida na conectividade, isto é, na possibilidade de pessoas, equipamentos e sistemas estarem ligados e comunicarem entre si. Ora, isto não é um dado adquirido no interior de país, nem mesmo em algumas zonas do litoral. Ou seja, o potencial das cidades e territórios inteligentes e sustentáveis terem um papel relevante na criação de ganhos de competitividade do interior é real, mas é indispensável que se desenvolvam esforços concertados à escala nacional para eliminar esta verdadeira fratura digital que existe atualmente.

Este aspeto ganhou ainda maior relevância com a pandemia. A adoção do teletrabalho e do ensino remoto ou o acesso a serviços de interesse geral online deveriam estar assegurados, independentemente do local em que me encontro no território nacional. Mais, esta conectividade seria também um forte incentivo para a instalação de novas empresas e fixação de talento no interior do país.

 

Existem competências suficientes em Portugal para alimentar este movimento?
Em paralelo com a conectividade, as competências são uma segunda dimensão de intervenção vital para que a ambição das cidades inteligentes gere valor para a sociedade e para o cidadão. Assentando a inteligência urbana, em grande medida, na capacidade de recolher e armazenar dados, processá-los e analisá-los – de forma a produzir informação que suporte a tomada de decisão e conduza à ação –, é inquestionável que este processo necessita de competências específicas. Face à realidade existente, necessitamos de um forte investimento em competências, quer em governação de dados, quer na sua exploração para a criação de valor, recorrendo aos diferentes tipos de abordagens analíticas para o planeamento, execução monitorização e avaliação de políticas públicas data-driven.
Nesse sentido, estando estabelecido no contexto do PRR uma forte aposta nas competências digitais, aguardamos com expectativa como este desafio específico da administração local será endereçado.

 

A pandemia alterou as formas de trabalho, de lazer e de as pessoas se relacionarem, colocando a tecnologia em destaque. Por oposição, é possível termos uma cidade inteligente ‘low-tech’?
Sendo inquestionável que a transformação digital é uma das mais poderosas alavancas da construção da inteligência urbana, não nos podemos esquecer que a transformação digital não consiste apenas em usar tecnologia para tornar os processos mais eficientes. Efetivamente, a grande oportunidade proporcionada pela transformação digital consiste na expansão das fronteiras de possibilidades, haja o capital humano e a criatividade para tirar partido do potencial de criação de novos produtos e serviços ao nosso dispor.

Dito isto, defendo que a cidade mais inteligente não é necessariamente a mais tecnológica. A transformação digital é instrumental e o grande desafio consiste em construir uma estratégia de inteligência urbana que, assente na identidade e especificidades de cada cidade e território, assegure qualidade de vida às pessoas. Ou, respondendo aos desafios da emergência climática e da transição energética, promova a necessária transição da economia linear para a economia circular. A tecnologia a usar para atingir esses objetivos será sempre em função dessa estratégia e tanto pode ser residual como central, pois cada cidade ou território é único e não existe uma “receita” passível de ser prescrita de forma transversal.

Copyright © Jornal Económico. Todos os direitos reservados.