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Lisboa foi a arena da mudança perante os riscos da tecnologia

Políticos, celebridades e figuras de culto do meio empresarial levaram ao Parque das Nações as ideias e mensagens mais relevantes da atualidade enquanto duas mil startups batalharam por investidores.
9 Novembro 2019, 14h44

Paddy Cosgrave não reinventou a roda, mas recalibrou o debate em torno da tecnologia. A Web Summit que o irlandês trouxe para Lisboa em 2016 deixou de ser apenas um cruzamento de soluções tecnológicas para se tornar no epicentro das ideias mais fraturantes da sociedade que são comunicadas para o mundo. A politicização da tecnologia acabou por perturbar o âmago da civilização atual e esse terá sido o maior manifesto desta quarta edição do evento tecnológico, que encerrou ontem.

A nossa liberdade foi ameaçada no momento em que parte das nossas vidas começou a acontecer no digital. A partir daí, alguém, uma empresa ou organização, passou a saber quem somos, sem que fôssemos protegidos. “A informação tornou-se no ativo mais valioso do planeta”, alertou Brad Smith, presidente da Microsoft. George Orwell acabou por revelar-se otimista ou não viu o potencial da iniciativa privada. No mundo atual, o Big Brother não é exclusivo do poder público; todas as grandes organizações observam-nos como nunca: Google, Amazon, Facebook, Netflix ou Huawei.

“Não podemos confiar em ninguém”, avisou Edward Snowden, ‘detido’ algures na Rússia. Por videoconferência, o ex-colaborador da CIA abriu a Web Summit 2019 com um discurso em que vincou a ideia de que os governos e as empresas têm agendas próprias. Quanto a nós, estamos por nossa conta. “As empresas agem em benefício delas. A informação tem a ver com as pessoas. Não é a informação que é manipulada – são as pessoas”, explicou o norte-americano. O perigo exarcebar-se-á com o 5G. “Um utilizador médio de 5G consome três vezes mais dados do que um de 4G. O 5G assegura uma experiência superior para a Internet das Coisas”, explicou Guo Ping, chairman da Huawei.

Escândalos recentes que aconteceram no digital amolgaram a confiança que depositamos na tecnologia. Episódios como a manipulação de dados para obter resultados eleitorais – e em referendos – manipularam a liberdade de voto. “É importante que os Estados Unidos liderem a tecnologia do século XXI de forma a preservar os valores da democracia liberal e do pluralismo”, afirmou Ro Khanna, congressista norte-americano, quando confrontado com a possível ameaça do avanço tecnológico chinês, esquecendo-se que a Cambrige Analytica utilizou dados de uma rede social criada num quarto em Harvard. Ou nas eleições presidenciais brasileiras de 2018. “A campanha levada a cabo por Bolsonaro parece muito semelhante à campanha de Trump. Investiguem”, sentenciou Brittany Kaiser, que está em redenção após expor as ‘manhas’ da Cambrige Analytica nas eleições norte-americanas, criando a Own Your Data Foundation.

Mais perto de nós, no Reino Unido, o segmented advertisement acoplado com a avalancha de informação consumida nas redes sociais condenou a União Europeia e a monarquia parlamentar britânica a uma história sem fim. O Brexit “é uma ideia terrível”, lamentou o ex-primeiro ministro Tony Blair, referindo que deve ser analisada no contexto do “desenvolvimento do populismo” e interpretada como “um grito de fúria contra o sistema político”.

O ser humano parece saber conviver com algoritmos que espiam a sua geolocalização ou que sabem os seus segredos. Mas poderá não ser tão brando quando as cookies se apoderarem da sua informação financeira. A carteira digital Calibra, subsidiária do Facebook, enviou um emissário a Lisboa. Numa palestra que mais pareceu uma conversa encenada, Kevin Weil, vice-presidente de Produto da Calibra, aproveitou a enchente na Altice Arena para fazer o contraditório às críticas que a imprensa mundial tem feito ao projeto financeiro com o selo de Mark Zuckerberg. Sob o véu da inclusão financeira, Weil justificou a Calibra e a Libra, moeda digital do Facebook. “É muito caro ser pobre”, disse. “Há 1,7 mil milhões de pessoas no mundo inteiro que não têm acesso a uma conta bancária e que têm as suas poupanças em casa”, reforçou.

Em 2021, ano em que o projeto deverá ser lançado, a equipa de Weil está comprometida “em separar a informação da Calibra da informação do Facebook”.

“Qualquer informação de um utilizador na Calibra nunca será utilizada para segmentação de publicidade. Mas aposto que nem todos na audiência acreditam em mim”, desafiou.

A regulação poderá ser parte da solução. No palco da Future Societies, Ro Khanna defendeu a criação de “uma Carta dos Direitos da Internet nos Estados Unidos”. “Essa legislação deveria prever os direitos de propriedade sobre informação ou o consentimento sobre o modo de recolha de informação ou para onde será transferida”, realçou. E a comissária europeia Margrethe Vestager garantiu que Bruxelas irá analisar “do ponto de vista da Concorrência”, mas também “do ponto de vista financeiro”.

Perigo da inteligência artificial
“A minha ambição não é ser humana, mas ser o robô mais humano possível”. As palavras poderiam ser do escritor de ficção científica Isaac Asimov. Mas foram proferidas pela robô humanoide Sophia, numa conversa com um parente igualmente artificial, a “versão robótica” do escritor Philip K. Dick. Os especialistas olham para a inteligência artificial, que lhes dá ‘vida’, com respeito. “Seremos a primeira geração da Humanidade que dará poder aos computadores para tomarem decisões até agora reservadas aos humanos”, alertou Brad Smith.

Ben Goertzel, fundador e CEO da SingularityNET alertou que os “robôs inteligentes vão querer obedecer às nossas leis tanto quanto os humanos obedecem às leis dos chimpanzés”. Apesar de sermos os criadores, não seremos o todo-poderoso dos robôs humanoides. A criação poderá olhar o criador com desdém. “Há uma questão mais importante”, admitiu o presidente da Microsoft. “Temos de criar um futuro com controlo”, reforçou, pois “a inteligência artificial pode ser uma espada como o mundo nunca a viu”.

Houve um lado da Web Summit que pouco se viu. Apesar do frenesim causado pela diversidade e igualdade de género, se não fosse um comunicado da empresa de Paddy Cosgrave, divulgado no primeiro dia do evento, não saberíamos que os 70.469 presentes vinham de 163 países ou que 46,3% eram mulheres. A hashtag #metoo poderá ter sido substituída pela #enoughisenough. Os painéis dedicados à igualdade de género chamaram figuras de proa como Sue Allchurch, responsável da United Nations Global Impact, e Dima Khatib, managing director da AJ+. No entanto, não foram suficientes para criar burburinho. Aliás, foi através das assistentes de voz, como a Siri, que Saniye Gülser Corat abordou a subtil e invisível perpetuação de papéis de género.

Em busca de investidores
Mas houve outra Web Summit, talvez mais próxima do ADN inicial do evento. Cerca de duas mil startups encheram os quatro pavilhões da FIL que lutaram por convencer um (pelo menos) dos 1.200 investidores a investir na próxima grande ideia. “Esta exposição é muito complicada”, reconheceu André Tavares, COO e co-fundador da SWITCH, uma fintech portuguesa que se orgulha ser “cash-flow positiva desde o início” e que não veio à Web Summit em busca de um cheque em branco. “Há filas e filas em que é tudo a mesma coisa: o Macbook Pro, com uma placa e logotipos que a certa altura são muito parecidos e com buzzwords muito idênticas. A questão é: se eu estivesse aqui a expor a minha startup, como é que ia convencer um investidor a apostar na minha entre tantas outras?”, salientou.

Ruca Sousa Marques, CEO e co-fundador da SWITCH reconheceu que a Web Summit é positiva para Portugal e para o ecossistema de startups nacional. “A Web Summit ter vindo para cá ajudou isto a ser reconhecido como um hub tecnológico” e “está a mudar a imagem”. “Já sofri na pele ir vender lá fora e, depois de dizer que sou português, ver a cara das pessoas” desconfiadas.

Lisboa terá ainda mais nove edições da Web Summit e, entretanto, “muitas startups vão falhar”, antecipou Paddy Cosgrave. “Mas naquele oceano de startups estão as empresas que vão definir a década de 2020. E isso, para mim, é muito interessante”, referiu o irlandês, que cresceu numa quinta.

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