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“A literatura interessa-me para criar entendimento”

Define-se como um observador de pessoas e gosta de salientar os atos heróicos de sobrevivência ao quotidiano. Valter Hugo Mãe fala de si e do seu ofício. 
  • Hiroki Kobaiyashi
22 Outubro 2016, 10h47

Quando começou tinha noção de que estaria hoje neste nível de sucesso?
Vejo estes 20 anos de edição e publicação como uma coleção de surpresas. Surpresa mesmo na oficina literária, ou seja, aquilo que os textos me foram dando de imaginário, de meditação, de modo de pensar, isso mesmo é a evidência mais profunda da surpresa. Sou a pessoa que sou hoje sobretudo por causa dos livros que escrevi.
A vida influenciou os livros e vice-versa? 
Sim, é uma mescla. É muito difícil perceber o que provocou em mim a pessoa que sou, mas a escrita teve um papel fundamental. E por isso vejo estes 20 anos como uma surpresa da força da escrita, de pensar através de um texto.
Como fez investigação para o novo livro?
Estive no Japão. As viagens a esse país serviram para afinar algumas perceções. Mas no fundo o livro é uma versão pessoal do Japão. A minha própria imagem do Japão. O livro é uma invenção minha onde utilizo alguns tópicos que me parecem clássicos do imaginário japonês.
“Homens Imprudentemente Poéticos” é um título enigmático… 
Gosto que os meus títulos sejam, não quebra-cabeças, mas que sejam pistas para algo que o leitor precisa de descortinar. Odeio títulos evidentes. E é bom um título instigar à imaginação e não a esgotar. Não deve dirigir o leitor. Deve sugerir ao leitor.
Hoje é fácil, em Portugal, viver da escrita?
Não. O país é muito pequeno. Não é muito normal que os escritores atinjam sucesso que lhes permita viver dos direitos de autor. Muito poucos o conseguem.
Ser considerado um dos mais importantes autores portugueses da atualidade não é demasiada responsabilidade?
Sim, mas tenho uma coisa ótima: vivo, desde os nove anos, num local pequeno e onde sou o cidadão discreto que sempre fui. O mundo dos livros fica meio no exterior do meu quotidiano. Como se estivéssemos a falar de uma personagem que de alguma forma aciono e à qual posso ter algum acesso. É muito importante que funcione como um alter ego para que possa regressar a uma normalidade humana, para que viva uma dimensão profundamente humana. Interessa-me muito que a literatura não prejudique a minha capacidade de ser uma pessoa com as outras. De estar em coletivo.
Há influência no Valter do dia-a-dia?
Sim, há muita influência, mas também há muita construção. A literatura é uma construção que interfere em tudo, mas não no aspeto que poderia ser paralisante do escritor bem-sucedido, do escritor conhecido, visível. A literatura participa na sua dimensão endémica, na sua dimensão concetual, meditativa. Mas já não é o espetáculo da literatura. É como se o espetáculo da literatura ocorresse num palco exterior à terra onde vivo. E de vez em quando as duas coisas tocam-se. Há uma chamada de atenção, uma perceção de que há coincidência, entre uma pessoa e a outra. Mas gosto muito que a literatura esteja na minha vida não para me diferenciar dos outros, mas para me aproximar. Ser alguém disponível para entender os outros. É importante saber situar o outro. Saber percecionar de que modo o outro vive. Com que armas o outro vive e, por isso, que possibilidade é que tem de chegar a um pensamento parecido ou diferente do meu. E fazer a descodificação da mensagem. No fundo a literatura ou arte interessa-me muito para criar entendimento.
Ter sido advogado ajudou-o a saber ouvir?
Sim. Habituei-me a ouvir aquilo que parecia ser a intimidade de uma determinada história. Por vezes era só a aparência da verdade. Que as pessoas nem sempre contam a verdade ao advogado. Não sei se me ajudou, mas é uma das minhas características: estar atento ao que os outros dizem. A advocacia e o exercício do Direito foi uma plataforma de estudo do discurso excecional. O Direito é uma disciplina discursiva. Houve um aproveitamento do necessário rigor de leitura e de escrita que me favoreceu e ajudou no meu percurso literário. A escrita solicita sobretudo uma intuição, um pressentimento. Entramos na obra como alguém à descoberta. Vamos à descoberta. E a arte é incrível por proporcionar essa revelação ao próprio autor, por se completar como uma máquina de revelar, aquilo que não é percetível.
Por vezes o livro ganha vida?
Sim, é uma coisa que nos preparamos para que possa acontecer. Mas não abarcamos a sua plenitude. O autor nunca abarca a plenitude da própria obra. É sempre menor do que a própria obra. E, por isso, ainda que a literatura seja uma arte, seja um percurso de profunda intuição, o sermos dotados de alguma metodologia, de alguma capacidade de resistência, é importantíssimo. O que mais acontece com quem quer afunilar algum tipo de obra é desistir a meio. É não entender como perdurar, como demorar um determinado pensamento. E, ainda que estejamos nesse território intuitivo, sem muitas evidências de como prosseguir, é preciso haver robustez de rigor, de capacidade de organização, para que o livro consiga terminar-se. Se não teremos enorme quantidade de intenções, mas nada consumado.
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