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Livro: “Pela Terra Alheia – Notas de Viagem”

O olhar acutilante de Ramalho Ortigão transporta-nos para episódios extraordinários, cujo detalhe nos recorda também a riqueza da língua portuguesa. Música para ler!
26 Setembro 2020, 10h11

 

“Passou por fim um criado no convés, e o meu compatriota disse-lhe:

– Pegue em mim e leve-me para baixo.

– Por onde quer o senhor que lhe pegue?

– Pegue-me pelo corpo, que a alma já a vomitei nesse mar. Agarre em mim como quem agarra num fardo que não tem dentro nada que se quebre e leve-me para a cama se não quer que eu me vire aqui com o avesso para fora.

O criado levou-o como quem leva uma mala (…).”

Este diálogo delicioso, tido a bordo de um navio que leva Ramalho Ortigão de Lisboa ao Havre, marca o tom de “Pela Terra Alheia. Notas de Viagem”, agora editado pela Quetzal, na sua coleção Terra Incognita.

Depois dos livros dedicados às atividades estivais (“As Praias de Portugal. Guia do Banhista e do Viajante”) e às termas (“Banhos de Caldas e Águas Minerais”), eis que o feliz leitor e a feliz leitora se podem – e devem – deliciar com os relatos de viagens por Espanha, Argentina, França, Alemanha e Itália. O tom é divertidíssimo; o humor, apuradíssimo; a atenção aos detalhes é preciosa e a ironia tem a marca inconfundível do coautor de “As Farpas”. Mesclada com a devida ternura, é o tom irónico que carateriza as descrições de companheiros de viagem e pessoas com quem se cruza nos países que visita (para além da Casa Real espanhola, durante as comemorações do segundo centenário de Calderon de la Barca).

“Pela Terra Alheia” condensa num só volume os dois tomos da edição original, que reúne textos escritos entre 1867 e 1910. Ramalho Ortigão era um homem culto e cosmopolita e o retrato que faz das cidades visitadas denota o deslumbramento perante paragens tão civilizadas – da sesta dos nossos vizinhos espanhóis à Sicília, onde passou três semanas, vindo de Nápoles, e a propósito da qual recorda que, na opinião de Goethe, “a Itália sem a Sicília não deixa imagem nenhuma no espírito. A chave de tudo é a Sicília, a rainha das ilhas.” –, tão românticas – Paris, em particular, onde as mulheres são mais amadas do que em qualquer outra parte – e tão desafiantes para o ser humano, como na Argentina, por exemplo, onde só a modéstia não lhe permite gabar-se de ter ingerido uma refeição “tão patagónica quanto andina e cordilheiresca”.

Absolutamente digna das melhores antologias sobre a arte equestre é a descrição da “vida nómada e pastoral da antiga Pampa do tempo de Fernão de Magalhães, de Montezuma e de Pizarro”, quando lhe é dado assistir a um cavalo bravo a ser laçado pelos gaúchos.

Também os detalhes com que narra o cortejo que assinala o dia do segundo centenário da morte de Calderón de la Barca, em Madrid, recordam-nos que a língua portuguesa é realmente rica, o que nos faz lamentar profundamente o vocabulário tão restrito que é usado por estes dias.

Eis a sugestão desta semana da livraria Palavra de Viajante.

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