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Margarida Marques: “Quando a cláusula de escape for desativada, devem existir novas regras”

Em entrevista ao Jornal Económico, a deputada socialista, cujo relatório de revisão do quadro legislativo macroeconómico foi aprovado esta quinta-feira com 461 votos favoráveis, defende que a suspensão das regras orçamentais não deve acabar “de um dia para o outro” e que deve haver “uma fase de transição”, que olhe “especificamente para a situação de cada país”. Objetivo: evitar condições de concorrência desiguais no mercado interno e preparar a UE para desafios futuros.
9 Julho 2021, 15h00

A eurodeputada Margarida Marques é a autora de um relatório do Parlamento Europeu, aprovado esta quinta-feira em Estrasburgo com 461 votos a favor, 94 contra e 133 abstenções, que sugere à Comissão a revisão do quadro legislativo macroeconómico. Em entrevista ao Jornal Económico, a socialista defende que a suspensão das regras orçamentais não deve acabar “de um dia para o outro” e que deve haver “uma fase de transição”, que olhe “especificamente para a situação de cada país”.

Margarida Marques considera que o regresso súbito das regras orçamentais europeias (que impõem um défice de 3% do PIB e recomendam uma dívida pública de 60% do PIB) pode agravar a discrepância entre Estados-membros e gerar condições de concorrência desiguais no mercado interno. Sugere, por isso, que sejam criadas regras orçamentais “mais simples, transparentes e flexíveis” para permitir aos Estados-membros dar resposta, não só à crise provocada pela Covid-19, mas também a outros desafios que se impõem no longo prazo, como a crise climática e a transição digital.

O debate sobre a revisão das regras orçamentais dificilmente levará a alterações definitivas antes da reativação das regras. O que podemos esperar a partir de 2023?
O debate sobre as regras orçamentais foi aberto pela Comissão em fevereiro de 2020 e foi imediatamente encerrado a partir do momento em que a Comissão ativou a cláusula geral de escape. O que se prevê é que a Comissão volte a abrir este debate ainda no outono e no final do ano apresente iniciativas legislativas. Face a este calendário, o Parlamento Europeu entendeu fazer um relatório de iniciativa em que marcasse a sua posição, enquanto instituição europeia. O que vai acontecer quando a cláusula geral de escape for desativada é uma questão decisiva. O primeiro princípio que pedimos é que não se podem retirar os incentivos antes de a situação económica e social estar reposta. Por outro lado, não se podem retirar os incentivos, retirando aos Estados-membros a sua capacidade de fazer a recuperação económica e social. A cláusula ativa é um incentivo, como é um incentivo a existência do NextGenerationEU, como existem incentivos ao nível da política monetária. Não podemos desativar a cláusula de um dia para o outro e nesse mesmo dia repor as regras tal e qual elas existem. A nossa ambição é que no momento em que a cláusula for desativada, existirem novas regras. Se não for possível existirem novas regras – porque sabemos que os processos de aprovação na União Europeia são lentos -, tem que haver uma fase de transição, que tem que olhar especificamente para a situação em cada país.

Ou seja…
Ou seja, explorar o princípio da flexibilidade e usar uma outra cláusula que é uma cláusula que já existe no Pacto de Estabilidade e Crescimento e que prevê a possibilidade em situações de exceção poder haver esta diferenciação entre os Estados-membros.

Admite que essa possibilidade, apesar de estar prevista, será de difícil acolhimento junto de alguns Estados?
Este relatório tem o compromisso de várias famílias políticas. Devo dizer que foi um acordo muito difícil, mas acho que conseguimos um bom relatório e com um alargado apoio político. Portanto, significa que há aqui uma maioria política relativamente a determinadas orientações, entre elas, estas. Essa é a posição do Parlamento. Evidentemente que o Parlamento é colegislador, temos que ter a posição dos Estados-membros. O que esperamos é que possa reunir uma posição consensual da parte dos Estados-membros, porque a recuperação económica da Europa interessa a todos. O impacto desta crise nas economias foi simétrico, com consequências assimétricas, em função da capacidade que cada Estado-membro lhes poder reagir, mas criou-se um Fundo de Recuperação único a nível europeu, exatamente porque se entendeu que havia um problema, que era um problema europeu e não o somatório de 27 problemas nacionais. Essa consciência existe.

As previsões económicas apontam para uma recuperação a várias velocidades na União Europeia. Teme que o fim prematuro das atuais regras orçamentais crie condições de concorrência desiguais no mercado interno e agrave as divergências entre Estados‑Membros? 
Há dois aspetos interessantes. A primeira é a discrepância entre Estados-membros, que hoje é evidente ou é um risco na medida em que o facto da Comissão Europeia ter autorizado os Estados-membros a recorrerem às ajudas de Estado para apoiarem empresas, de facto, colocou os Estados-membros numa posição diferenciada. Há Estados-membros que têm maior margem orçamental para apoiar empresas, do que outros. Isso foi uma boa medida, não ponho isso em causa, mas evidentemente cria discrepâncias entre os Estados-membros e rapidamente temos que repor o funcionamento do mercado interno, numa perspetiva justa e se calhar rever algumas regras da concorrência. Mas as regras têm que existir exatamente para que o mercado interno seja justo. Relativamente às regras de governação económica, a minha posição é que são necessárias. É necessário existirem regras de governação económica e todos ganhamos com isso, designadamente os países que estão menos protegidos e têm as suas economias mais expostas. Nós ganhamos com a existência dessas regras.

O que sugere então?
Não podemos apenas penalizar os países que não respeitam as regras do défice e não penalizamos os países que não respeitam a regra do excesso de excedente. Os défices são 3%, os excedentes são 6%. Há países que ultrapassam os 6% em excedentes. Agora, que regras precisamos? Havia já uma tendência clara quer nos papers, quer nas instituições internacionais de que as regras de Maastricht estavam obsoletas. Essas medidas foram decididas num contexto económico específico e muito reportadas a esse momento. É um erro que não podemos cometer desta vez. Por outro lado, o próprio uso das regras que o investimento público estava a zero, praticamente. Havia que rever as regras e isso era uma tendência maioritária que já existia antes da pandemia e a pandemia evidenciou claramente isso. Precisamos de regras, de regras que não sejam ultrapassadas pelo tempo – ou seja, que vençam a temporalidade –, e de regras que obriguem a olhar para a dívida de uma forma diferente, designadamente a olhar mais para a sustentabilidade da dívida, e que hajam percursos específicos por Estado-membro. Temos que encontrar um percurso mais lento para os objetivos da dívida.

Não poderia aí funcionar passar a focarmo-nos mais em metas qualitativas em vez de metas quantitativas, para suprimir o fator de temporalidade que referia?
Nós não propomos mudar os Tratados. Aquilo que propomos é que tudo se faça no âmbito dos Tratados. Está a levantar uma questão que é: temos que olhar mais para a sustentabilidade da dívida. Por outro lado, temos que olhar de uma forma específica para o investimento. Não podemos estar a dizer que temos que fazer o Green Deal e que temos neutralidade carbónica tem custos grandes para as empresas, para os países, para as regiões. Tem que haver aqui uma fase de transição que exige um investimento significativo. E temos que criar condições orçamentais que permitam implementar quer o Green Deal, quer o Pilar dos Direitos Sociais, ou os objetivos de desenvolvimento sustentável. Temos que olhar para o investimento de forma a que este possa proporcionar atingir os objetivos da União Europeia e relançar as economias europeias. O NextGenerationEU pode ser contratualizado até 2023 e executado até 2026 e se nós repomos de um dia para o outro as regras, estamos a impedir que os Estados-membros usem o Fundo de Recuperação. A outra necessidade é que as regras sejam mais simples, claras, transparentes e democráticas, em que haja uma apropriação por parte dos Estados-membros, para que tenham uma palavra a dizer neste debate, mais do que tiveram na resposta à crise anterior. Este é um elemento que tem implicações na própria governação das regras. Podemos ter um quadro de regras excelente, mas se não tivermos uma governação que permita um uso inteligente das regras, o passado prova-nos que precisamos de regras mais simples.

De que forma é que a criação de regras orçamentais “mais simples, transparentes e flexíveis” vai permitir aos Estados-membros da UE dar resposta não só à crise provocada pela Covid-19 mas também a outros desafios que se impõem no longo prazo, como a crise climática e a transição digital?
Temos de olhar para o investimento de uma forma diferente. E isso não é uma questão teórica. Temos de um conceito de investimento sustentável, que está na taxonomia e que está provado. Mas a questão é mesmo essa. Temos regras que permitam atingir esses objetivos. Ou seja, não podemos ter um discurso político dessa natureza e, ao mesmo tempo, não termos os instrumentos orçamentais que não nos permitam se coerentes com esse discurso político, porque isso chama-se cinismo político e não é isso que queremos ter.

No relatório, reconhece que o desafio dessas duas transições vai exigir um investimento público adicional, mas é certo que, ainda antes da crise, o investimento tanto no setor público como privado a nível europeu era “insuficiente”. A revisão do quadro orçamental pode ajudar inverter esta tendência? 
É isso que nós queremos e é, por isso, que o NextGenerationEU é orientado exatamente para esse objetivo. Foi por isso que exigimos, quer no Quadro Financeiro Plurianual de 2021-2017, quer no Fundo de Recuperação, que haja uma percentagem do Orçamento que tem de ser usada para a transição climática e outra parte que tem de ser usada para a transição digital. Ou seja, 30% para o clima, 20% para o digital. No caso do Fundo de Recuperação, para o clima, chega mesmo aos 35%. Essa é uma questão essencial. Mesmo que nós tenhamos o financiamento para fazer essas transições tem de haver orientações para todos, para os Estados-membros não terem a tentação de usar esses financiamentos com outras finalidades. Essas duas dimensões, climática e digital, têm de estar nos projetos financiados pelo Fundo de Recuperação e pelo Quadro Financeiro Plurianual.

Sugere que também os empréstimos NextGenerationEU devem ser registados como dívida nacional. Qual o motivo?
Essa questão foi muito discutida. O Fundo de Recuperação tem dois pilares: transferências e dívida. É interessante porque o pilar dívida foi muito pouco interessante para os Estados-membros que recorreram muito pouco a este pilar, apesar de ainda poderem fazê-lo até final de 2022. A questão que se coloca é que os Estados-membros não querem recorrer a este pilar porque, face às atuais regras, estão a trabalhar para reduzir a dívida para 60%, mas se depois isso for aumentar dívida e for coloca-los em situação de incumprimento, evidentemente que os Estados-membros não consideram esse financiamento tão atrativo. Todos os anos, a Comissão Europeia apresenta uma comunicação sobre a flexibilidade, que na prática é a análise de cada caso. O que propomos é que a despesa ligada à parte dívida (loans) tenha o mesmo tratamento que o Fundo Europeu de Investimento Estratégico. Esta foi a melhor forma para encontrarmos um compromisso no Parlamento Europeu e isso facilita a vida aps Estados-membros para para que usassem, na sua plenitude, o NextGenerationEU.

Um dos países que se tem mostrado mais reticente em usar os empréstimos tem sido Portugal, apesar de o Governo já ter admitido que poderá usar mais do que o previsto. É da opinião de que Portugal deveria usar a totalidade dos empréstimos que tem à sua disposição, tendo em conta que as condições de financiamento são mais vantajosas?
Praticamente todos os Estados-membros se mostraram reticentes. Eu faço parte do grupo que está a acompanhar os Planos de Recuperação e Resiliência e penso que há só dois que usaram totalmente o montante que lhes foi atribuído. Penso que Portugal seguiu uma estratégia inteligente, de começar a executar o Fundo e, se necessário, recorrer mais a este pilar. Os empréstimos têm condições de financiamento privilegiadas e a possibilidade de recorrer a este pilar até ao final de 2022 dá margem de manobra a Portugal para poder tomar essa decisão mais tarde. Portugal tem um grande desafio agora que é o de executar o financiamento que vai receber e é preciso ter em conta que pode pagar até 2026 mas tem de contratualizar até 2023, e 2021 já está a acabar. Tem de estar muito concentrado na execução do Plano de Recuperação e é natural que, por uma posição até de segurança, que Portugal privilegie a dimensão subvenções agora e que, até 2022, se tiver necessidade, recorrer a este pilar.

De que forma é que as metas em termos sociais acordadas na Cimeira do Porto poderão ser introduzidas nas avaliações aos países?
No grupo de acompanhamento dos Planos Nacionais de Recuperação e Resiliência, estamos a fazer isso. O acompanhamento dos programas nacionais faz-se no âmbito do processo semestre europeu e, portanto, esses objetivos têm de ser quantificados em matéria de emprego, acesso à formação e redução da pobreza. São três objetivos que estão completamente quantificados até 2030. Tem de haver a análise dos progressos para atingir esses objetivos.

Poderão haver sanções para os países que não atinjam essas metas que estão quantificadas?
Espero que a questão não se coloque. A lógica que temos no relatório é passar de uma lógica de sanções para uma lógica de incentivos. O primeiro Governo socialista mostrou que substituir o princípio de sanções pelo de incentivos resulta. O caso português é um caso interessante essa matéria. Tem de haver incentivos da parte da Comissão Europeia, que tem um conjunto de indicadores para acompanhar a execução do quadro e, claramente, esses objetivos têm de fazer parte da análise de progresso desses indicadores.

Para terminar, partilha da opinião do Conselho Orçamental Europeu de que a introdução de uma capacidade orçamental comum a nível europeu criaria incentivos para um melhor cumprimento das regras orçamentais da UE?
Completamente. É uma proposta que defendo há muito tempo. É fundamental e o meu relatório dá abertura para isso. E penso que há condições para haver uma maioria para avançar com essa proposta no Parlamento Europeu.

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