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Maria Augusta Ramos: “Não consigo ser otimista com o que se está a passar no Brasil”

A realizadora brasileira conta, ao Jornal Económico, como tentou desconstruir o cenário complexo que levou ao afastamento da primeira mulher eleita chefe de Estado no Brasil e afirma que desde então o país mergulhou numa crise profunda da democracia.
6 Maio 2018, 10h30

A nova longa-metragem da cineasta brasileira Maria Augusta Ramos, “O Processo”, estreou esta quarta-feira no festival IndieLisboa, no Cinema São Jorge. Mais de oitocentas pessoas encheram a sala Manoel de Oliveira para assistir ao documentário que mostra os bastidores do processo de impeachment da antiga presidente do Brasil, Dilma Rousseff, que fez estremecer o país no verão de 2016.

A estreia em Portugal contou com a presença da cineasta Maria Augusta Ramos. A realizadora conta, ao Jornal Económico, como tentou desconstruir o cenário complexo que levou ao afastamento da primeira mulher eleita chefe de Estado no Brasil e afirma que desde então o país mergulhou numa crise profunda da democracia. Maria Augusta Ramos considera que é urgente rever a estrutura política e insiste que tanto Dilma Rousseff como Lula da Silva foram alvos de perseguição política e acusados sem que estivessem reunidas provas suficientes. *

O documentário “O Processo” aborda o desencadear de acontecimentos que levaram à destituição de Dilma Rousseff, sob uma perspetiva de que terá sido um golpe. O que a leva a acreditar que o afastamento de Dilma se tratou de um golpe?

A minha visão sobre o processo de destituição de Dilma Rousseff está explícita no 2 horas e 19 minutos. Este foi um caso complexo, com várias camadas e outras possíveis narrativas, que não sejam somente a favor do impeachment. O filme reflete essa minha visão. Diante de todos os acontecimentos e na sequência de tudo o que vivi e ouvi, considero que foi um golpe. Agora até a própria direita admite que o foi. A ideia do filme não foi provar ou denunciar. Fiz este filme para compreender com é que este processo se deu. Acompanhei os discursos da direita, a favor, e da esquerda, contra, para documentar esse momento histórico e para que possamos em conjunto rever e refletir sobre o que aconteceu, com uma certa distância que é dada pelo cinema. A ideia é que nos possamos questionar e descompor alguns dos nossos preconceitos e ter uma melhor compreensão, que não é só intelectual como também emocional. Embora defenda que o impeachment foi um golpe, o filme aborda também a visão da direita e cada pessoa tira as suas conclusões.

Dilma foi acusada de ter desrespeitado a lei orçamental para disfarçar as contas públicas, o que terá levado a um aumento do défice fiscal do Brasil. Mas as chamadas “pedaladas fiscais” não eram uma prática nova no Brasil…

As chamadas “pedaladas fiscais” já tinham acontecido em Governos anteriores ao de Dilma Rousseff e o Tribunal de Contas nunca se tinha pronunciado contra. O facto é que como houve um investimento muito alto – assim como no Governo de Lula – nos subsídios à agricultura, que subiram de 2 mil milhões de reais para 50 mil milhões. O montante envolvido nesse pagamento dos subsídios aos agricultores passou a ser muito maior. O que eles chamam de pedaladas são os atrasos no pagamento dos subsídios aos bancos públicos. Não é que eles tenham deixado de ser pagos. Houve um atraso, levou ao pagamento de multas e o pagamento de juros. O Governo pagou a multa e os juros, só que havia um argumento, que era a favor do impeachment, de que isso tinha sido ilegal e de que aquela prática não era simplesmente um atraso. Era uma operação de crédito, um empréstimo. Acontece que o Governo federal não pode pedir dinheiro emprestado a bancos públicos. Daí a prática de crime. Segundo a união da direita, pró-impeachment, esse atraso como gerava juros, aquilo na visão deles passa a ser uma operação de crédito. Essa foi a argumentação da direita.

A quem é que interessava que Dilma fosse afastada?

Haviam vários interesses. Interesses económicos e políticos.

Uma das teses defendidas pelos advogados de defesa de Dilma Rousseff é a de que a destituição foi uma das armas utilizadas pelo presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, assim que foi constituído arguido no processo da Lava Jato. Acredita que esta foi uma maneira de Eduardo Cunha tentar travar a investigação?

Isso é o argumento usado pela defesa da presidente Dilma e que, a meu ver, tem todo o sentido e é autêntico. Foram descobertas gravações do senador Jucá com o ex-senador Sérgio Machado. Fica patente que existiria um interesse em parar a investigação Lava Jato.

Mas antes disso já tinham sido apresentados cerca de cinquenta pedidos de impeachment contra Dilma Rousseff na Câmara de Deputados em 2015…

Já existia uma oposição a Dilma Rousseff, devido à grave crise económica que o Brasil atravessava e atravessa. A questão do porquê de Eduardo Cunha aceitar o pedido de destituição nesse momento e não noutro é uma questão bastante pertinente. Uma das ideias que é desenvolvida no documentário é que tal aconteceu porque o PT se negou a apoiá-lo na Comissão de Ética, depois de ter sido constituído arguido na Lava Jato. Mas há vários interesses em jogo. Não foi apenas esse.

Outras das teorias que é explorada pela defesa foi a de que o impeachment tinha como objetivo afastar o PT para se iniciar uma nova fase política no Brasil, com novas privatizações e uma maior aproximação aos Estados Unidos. A verdade é que assim que chegou Temer ao poder fez aprovar privatizações em vários setores. Também partilha essa ideia de que havia uma intenção de Temer e do PMDB de que Dilma fosse deposta?

É verdade que assim que Temer chegou ao poder tomou uma série de medidas de austeridade, como a PEC 241, que nós chamámos de “PEC do fim do mundo”. Basicamente foi o congelamento dos investimentos sociais, em educação e saúde, por vinte anos; as privatizações; a abertura da possibilidade de empresas petrolíferas estrangeiras pudessem comprar parte do pré-sal [zona de exploração petrolífera ao largo do Brasil], o que veio tirar à Petrobrás o monopólio, de certa maneira. Na altura do presidente Lula, a exploração do pré-sal seria feita por partilha e não por concessão. A reforma trabalhista foi também modificada e agora querem avançar com a reforma previdenciária. São medidas neoliberais e de uma austeridade draconiana, que estamos a ver que vai afetar ainda mais o Brasil. Temos mais 2 milhões de desempregados desde que Temer chegou ao poder. A dívida pública subiu, o que vai afetar ainda mais a economia brasileira, com o congelamento dos investimentos públicos. Isso serve aos interesses de uma elite corporativa.

A verdade é que Dilma saí mas Temer também, ao que parece, não tem um cadastro propriamente limpo. Sobre eles estão também vários acusações de envolvimento em esquemas de corrupção na Lava Jato…

Pois é. Inclusive ele foi denunciado pelo antigo procurador-geral da República, Rodrigo Janot. Foi o primeiro presidente que foi denunciado por um crime de corrupção, que é diferente de impeachment. O impeachment não é um crime de corrupção, é um crime de responsabilidade. Temer deveria ter sido julgado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) mas, diante do facto de que ele é o atual presidente da República, só poderia ter acontecido se o Congresso permitisse que ele fosse julgado e o Congresso não o permitiu. Daí dá para imaginar o nível da corrupção…

Acha que agora com as eleições de setembro Temer pode vir também a ter de enfrentar a justiça?

Podemos ser otimistas, mas eu não consigo ser otimista. Neste momento, infelizmente, sou bastante pessimista, tendo em conta tudo o que está a acontecer no país. Não acho que o Brasil esteja a ir por um bom caminho. Tem a ver com o rumo que a democracia está a tomar, com o Estado de Direito e as instituições não estão a funcionar mais como deveriam. Acho que estamos perante uma crise profunda na democracia brasileira. Foi uma crise que já se vinha a aprofundar e que ficou ainda mais latente durante o processo de impeachment. A partir daí que a crise se foi agravando.

Jair Bolsonaro, que foi também um dos apoiantes do afastamento de Dilma Rousseff, é hoje o pré-candidato que lidera as sondagens, logo atrás de Lula. 

Por enquanto, Lula lidera as sondagens. Sem Lula teremos outros candidatos. Não acredito que Jair Bolsonaro vença. Acho que daí a chegar a uma vitória do Bolsonaro acho que ainda há muito caminho a percorrer. Não acredito que a população brasileira vá eleger Bolsonaro. Esse seria o ato final da tragédia. Vários candidatos ainda não se colocaram e espero sinceramente que isso não venha a acontecer. Lula é ainda candidato e ainda não se sabe muito bem o que irá acontecer. O Bolsonaro em si já é uma tragédia. Produzirmos um ser humano como o Bolsonaro e haver pessoas que sejam seguidoras de uma pessoa tão autoritária, militarista, preconceitosa, machista, intolerante, enfim… Seria o abismo total.

Mas o que explica a subida de Bolsonaro nas sondagens? Considera que esta subida está relacionada com uma perda de confiança nos grandes partidos?

Isso é uma resposta complexa. Não acredito que seja apenas falta de credibilidade dos partidos, acho que é algo muito mais complexo. Se pensarmos no caso da Europa, como é que se explica o surgimento de partidos de extrema-direita, intolerantes, racistas e com uma visão autoritária? Não é uma realidade exclusiva do Brasil. Vivemos num mundo globalizado e acredito que o Bolsonaro seja uma consequência de uma sociedade em que vivemos hoje e dos valores que temos, assim como [Donald] Trump ou [Marine] Le Pen. Hoje assistimos a uma grande polarização no Brasil. Nada é preto e branco. É preciso entender o que está a dividir o Brasil e o que nos arrastou para tamanha intolerância, falta de diálogo e incapacidade de se entenderem uns aos outros. Essa polarização está a levar o país ao abismo. A tolerância vem de uma certa aceitação; até podemos discordar, mas aceitamos o outro. A tolerância é um elemento essencial à democracia. Se não viveríamos num fascismo da maioria.

Recentemente, Lula da Silva foi preso também por corrupção, por ter recebido luvas da construtora OAS. Considera que também Lula está a ser alvo de perseguição política?

Considero que está em causa um perseguição política sim. Não há provas. Nada prova que o apartamento que dizem ser dele, seja realmente. Ele nunca viveu lá e o apartamento não está no nome dele. O apartamento é da OAS. Ele visitou o apartamento uma vez, porque houve uma possibilidade de que ele e a mulher fossem comprar o apartamento e eles decidiram não comprá-lo. Como é que se prova que o apartamento é de uma pessoa que nunca viveu lá e não tem a escritura. Como?

Mas a justiça acredita que Lula tinha conhecimento do esquema de corrupção do PT com a Petrobrás…

Mas para incriminarmos além precisamos de provas. A corrupção existe no Brasil há 300 anos. A corrupção não foi criada pelo PT. Todos os partidos estão envolvidos. É importante sublinhar que as investigações só foram possíveis a partir do Governo de Lula. Foi ele que deu independência à polícia para que houvessem investigações. O antigo Fernando Henrique Cardoso era chamado de “o engavetador”, porque os processos não avançavam. Dizer que não houve corrupção na era de Fernando Henrique Cardoso é uma piada. Toda a gente sabe disso. Mas nem toda a gente é corrupta e para se condenar um presidente tem de se ter provas. Não é suficiente que alguém numa delação premiada denuncie que a pessoa sabia do esquema. Não podemos colocá-los todos na prisão, porque sabiam. É preciso ter provas concretas que demonstrem isso. O melhor seria rever a estrutura política.

* O filme será exibido novamente no domingo, dia 6, no Cinema São Jorge às 19h00.

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