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“Não percebo se há uma real vontade de combater o branqueamento”

João Medeiros considera que a nova lei do branqueamento de capitais, que entrou em vigor no ano passado, é demasiado complexa e detalhada. “Não temos uma lei. Temos um verdadeiro código”, diz.
  • Cristina Bernardo
2 Fevereiro 2018, 06h55

O legislador foi mais papista que o papa na transposição para o direito português da diretiva do branqueamento de capitais, defende o advogado João Medeiros, sócio da PLMJ. O penalista considera que a nova legislação, que entrou em vigor em agosto, é demasiado complexa e pormenorizada, a ponto de a sua eficácia ficar comprometida.

O que pensa sobre esta lei?
No essencial, a nova lei visa reforçar e detalhar as medidas de combate e de prevenção ao branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo previstas na lei de 2008. É, do meu ponto de vista, uma lei com uma formulação técnica muito deficiente, que dá lugar a muitíssimas dúvidas e possibilidades de interpretação. Acho que, como é usual, Portugal quis ter uma boa classificação juntos das instâncias europeias e portanto aceitou acriticamente e em toda a extensão a transposição da diretiva de branqueamento, indo muito mais além do que países tradicionalmente mais cumpridores. Temos hoje, portanto, não uma Lei de Prevenção de Branqueamento, mas uma verdadeiro Código do Branqueamento.

Como deveria ter sido feita, então, em sua opinião?
Pessoalmente gostaria que o caminho tivesse sido outro: a formulação de uma lei onde se definiam os princípios gerais e depois o detalhe seria feito junto na regulamentação do sector específico. Acho que seria mais eficaz e mais simples de apreender pelos operadores e teria em conta a sua sofisticação. No regime que agora temos, um pequeno operador é obrigado a tentar interpretar e compreender uma legislação complexa e remissiva e saber que obrigações se lhe aplicam. Com toda a franqueza, ainda não compreendi, se por detrás desta lei há uma real e efetiva vontade de combater o branqueamento de capitais ou se esta complexidade e excessivo detalhe visa provocar o colapso, por excesso de informação.

Há uma questão que tem gerado polémica e que tem que ver com o segredo profissional dos advogados, que fica em causa com a nova lei. O que pensa sobre isso?
Como advogado que sou, um aspeto que me preocupa particularmente na nova lei são os deveres impostos aos advogados e a sua compatibilização com a preservação do segredo profissional. A nova lei impõe aos advogados deveres cujo cumprimento passa pela prestação de informações transmitidas ao advogado e que, na minha óptica, se revelam totalmente incompatíveis com a obrigação de guardar segredo profissional.
A comunicação às autoridades de factos que possam constituir indícios de operações de branqueamento de capitais põe em causa a relação de confiança entre o cliente e o advogado, assim como fragiliza o compromisso na administração da justiça assumido perante a sociedade pelos advogados.
É suposto que os advogados assumam o papel de confidente necessário (e não de delator), e que o cliente se sinta confortável para revelar informação que não confiaria a mais ninguém. Se temer que o que diz possa vir a ser revelado, o cliente deixará de acreditar que a defesa dos seus direitos e interesses está garantida, como lhe é constitucionalmente assegurado.
Os advogados não se insurgem por preferirem ocultar os atos dos seus clientes. Insurgem-se porque, em face da incerteza inerente a uma mera suspeita, cuja análise poderá ser bastante subjetiva, colocar-se-á em causa aquele que tem sido considerado, durante decénios, como o “timbre da advocacia”, com guarida constitucional: o segredo profissional.
Os advogados não podem, em circunstância alguma, ser transformados em cúmplices dos órgãos de polícia criminal contra os seus clientes, traindo a confiança que lhes foi depositada.

O que sugere para melhorar esta legislação?
Na minha óptica, o verdadeiro caminho não só para a prevenção do branqueamento de capitais, mas essencialmente para a prevenção dos próprios crimes que lhe são subjacentes, como é o caso da corrupção, passa pelo incentivo do Estado à adopção pelas empresas de estruturas de conformidade legal, ou de ‘compliance’, se preferir o estrangeirismo. A lógicas das empresas e dos empresários quererem ser cumpridores da lei é uma questão essencialmente cultural. Mas, como é evidente, a legislação é uma óptima forma de ajudar a conformar mentalidades. E a verdade é que em certos países, como na vizinha Espanha ou no Brasil, a própria legislação penal incentiva a adopção pelas pessoas colectivas de estruturas e mecanismos de conformidade legal, prevendo, designadamente, a diminuição das penas ou até mesmo a não penalização, no caso de a empresa provar ter em vigor mecanismos efetivos de prevenção de práticas ilícitas. Por outro lado, mesmo do ponto de vista repressivo, as autoridades judiciárias deveriam poder lançar mão de mecanismos positivos e formativos relativamente às pessoas colectivas. Seria por exemplo a possibilidade de utilização do mecanismo da suspensão provisória do processo, condicionada, como injunção comportamental, à adopção pela pessoa colectiva de mecanismos efectivos de conformidade legal, ou a possibilidade de consagração da suspensão da pena aplicada à pessoa Colectiva, subordinada ao regime do prova nos termos do artigo 53 do Código Penal, em que, em lugar de um plano de reinserção social, fosse exigido a adoção de um plano concreto de conformidade legal. Por último e para não me alongar, seria também interessante consagrar-se a possibilidade de adopção de acordos com entidades reguladoras, orientados não apenas e só a mecanismos de clemência de arrependidos, mas à diminuição da medida da coima em função da adopção de mecanismos efetivos de conformidade legal.

Experiência pessoal sobre o tema: o branqueamento é um problema grave e actual em Portugal?
O branqueamento de capitais não surge normalmente isolado. É sempre decorrência da prática de um crime que lógica e cronologicamente lhe antecede. Existindo, como existe, corrupção, fenómenos de tráfico e exploração sexual em Portugal, necessariamente que o produto destas atividades é alvo de tentativa de branqueamento de capitais. A questão que acho que vale a pena realmente pensar-se, é saber, se nos dias de hoje, não caminhamos a passos largos para uma vulgarização do crime de branqueamento de capitais, colocando-se todo o mecanismo da prevenção ao serviço da tentativa de evitar a evasão fiscal e deixando-se de atacar as situações efetivamente mais gravosas que foram aquelas para as quais historicamente o branqueamento de capitais foi criado: terrorismo, tráfico de estupefaciente, tráfico de seres humanos, etc., etc. E a meu ver sim. Claramente.

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