O furto do material de guerra dos paióis de Tancos fez estragos na imagem das Forças Armadas, e muito em particular do Exército, contribuindo para aumentar a desconfiança dos portugueses relativamente ao profissionalismo e à competência dos seus militares.

O comportamento dos principais intervenientes nos acontecimentos que lhe sucederam veio agravar algo já por si muito grave: as desastradas decisões do Chefe de Estado-Maior do Exército; as lucubrações fantasiosas do ministro da Defesa Nacional; a luta fratricida entre diferentes órgãos de polícia criminal; a forma pouco “ortodoxa” como a Polícia Judiciária Militar sonegou informação ao Ministério Público sobre os procedimentos utilizados para recuperar o material de guerra furtado; a informação capciosa propalada por alguns setores da Comunicação Social, na qual se incluem especialistas e comentadores de última hora; e as tentativas de obtenção de dividendos políticos promovidas por alguns partidos políticos.

Contudo, sem pretendermos justificar ou branquear comportamentos e práticas incorretas, não podemos deixar de introduzir no debate questões que as narrativas mainstream se têm esquecido de considerar. Passado mais de um ano sobre os acontecimentos, não só subsistem ainda dúvidas a que urge responder de uma forma inequívoca, como emergem alguns factos desconcertantes. É crucial saber se o Ministério Público tinha conhecimento de que se encontrava em preparação um assalto a instalações militares e, em caso afirmativo, porque é que não informou as Forças Armadas.

Até ao momento, esvaziando de conteúdo o comunicado da Procuradoria-Geral da República em que se afirmava estarem em causa suspeitas da “prática de crimes de tráfico de armas internacional e terrorismo internacional”, não vieram ainda a lume quaisquer indícios da ligação dos suspeitos ao tráfico de armas ou ao terrorismo internacional, não obstante a tentativa de se tentar credibilizar aquela hipótese recorrendo-se a uma narrativa claramente construída.

O aparecimento do material furtado e a prisão de um dos suspeitos vieram comprometer os pressupostos abraçados pelo Ministério Público. Nem os assaltantes estavam ligados ao terrorismo internacional nem ao tráfico de armas internacional. Tudo leva a crer que o alegado assaltante teve mais olhos do que barriga. Se estivesse ligado a redes de crime organizado ou terroristas, teria escoado o material através do seu “canal de distribuição” recorrendo aos seus contactos, em vez de telefonar para Loulé a pedir ajudar ao seu amigo de infância para fazer a sua devolução.

Por outro lado, um órgão noticioso fez saber há uns dias que poucas semanas após o assalto aos paióis de Tancos, a Polícia Judiciária e o Departamento Central de Investigação e Ação Penal puseram em marcha uma operação encoberta para tentar recuperar o material furtado, recorrendo a um polícia estrangeiro que se fez passar por membro de uma das várias fações do IRA (Exército Republicano Irlandês) interessado na sua compra.

A ser verdadeira esta notícia e os assaltantes tivessem ligações a redes terroristas, deveria ser preocupação impedi-los de vender aos potenciais compradores da sua rede. Não havia necessidade de lhes montar uma cilada arranjando-lhes um comprador fictício. Tal sugere que se sabia serem os assaltantes um grupo pouco sofisticado e paroquial, sem ligações internacionais. Ganha forma a hipótese de que houve uma tentativa de “internacionalizar” artificialmente os assaltantes para justificar a posteriori as suspeitas do Ministério Público, e assim preencher as condições legais necessárias para que a investigação fosse subtraída à PJM.

Esperemos ver estas e outras questões esclarecidas no decorrer do processo. Oxalá não se confirmem as dúvidas aqui levantadas. Não sendo o caso, a credibilidade do Ministério Público poderá ser severamente afetada, o que não é bom para a já tão abalada confiança dos cidadãos nas instituições do Estado.