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“A normalidade da vida das pessoas comove-me muito”

Com 20 anos de percurso, o autor aborda o modo como deixa o mundo dos livros no exterior do dia-a-dia. E fala da obra mais recente – “Homens Imprudentemente Poéticos”.
  • Hiroki Kobaiyashi
22 Outubro 2016, 10h50

De que forma os locais onde nasceu e por onde passou o definem a nível pessoal e profissional? Isso reflete-se nos livros?
O facto de viver nas Caxinas, que é um bairro de pescadores em Vila do Conde, o lado desfavorecido de uma cidade luxuosa, marca-me muito enquanto pessoa, enquanto indivíduo e enquanto autor. Tenho uma pulsão essencialmente ligada às pessoas mais desprotegidas ou por natureza mais invisíveis, mais discretas, mais desclassificadas ou aparentemente mais simples. A minha natureza de autor leva a que me ocupe de personagens que parecem heróis improváveis. São pessoas do quotidiano que estão em todos os lugares e em todas as ruas e que, vistas de um modo mais rápido, não parecem óbvias como heróis de aventura nenhuma.
Talvez porque são heróis pelas atitudes no quotidiano…
Porque eu vejo a heroicidade como uma capacidade de sobrevivência e a mim interessa muito elogiar a simples robustez das pessoas em sobreviverem à dificuldade natural da vida. Não tenho muita tendência para criar o indivíduo superior, destinado a grandes feitos. Tenho mais tendência para considerar que é um grande feito a simples capacidade de sobrevivência. Ainda que recorra muitas vezes a tópicos de alguma fantasia aquilo que faço é verdadeiramente um retrato das pessoas reais. Um retrato das pessoas tal qual as vejo na rua, como as encontro, como as sinto. Tentando traduzir aquilo que me parecem ser os seus problemas, angústias, anseios e desejos. Talvez não soubesse escrever sobre outros heróis porque os heróis que mais me impressionam são estes. Os contínuos, os quotidianos, os reais, aqueles que encontro, aqueles que perdem o emprego, aqueles que sofrem com os filhos, aqueles que contam os tostões, aqueles que perdem as casas, que precisam de emigrar, sentem saudade… esta normalidade da vida das pessoas comove-me bastante.
Utiliza o que apreende nos seus livros?
Aquilo que me impressiona em qualquer expressão da humanidade tento traduzir através da literatura. Em certas passagens dos meus livros posso ter usado concetualmente a imagem de algo que vi, algo que presenciei, algo que ouvi ou os gestos de alguém. Muitas vezes não tem a ver com as palavras que as pessoas dizem, mas sim com os gestos. Uma espécie de fisicalidade. Tudo é comunicacional.
Dos géneros literários que experimentou qual lhe agrada mais?
Creio que o género da ficção foi o que mais generosamente me entregou algo. É o género no qual consigo maior satisfação. Os meus romances podem conter muita poesia, podem ter teatro, como podem ser melódicos e ter passagens quase musicais, como podem ser plásticos e aludir à pintura… é o género que mais me oferece e no qual melhor tenho conseguido expressar-me.
Como passou da advocacia para a poesia?
Já escrevia poesia desde criança, pelo que esta não era a prazo. A poesia entrou na minha vida como uma forma de ser. Quando publiquei o primeiro livro ainda era estudante e o livro aparece como se fosse um milagre natural. Decorre de escrever obstinadamente. Era como se fosse inevitável. Era impossível de conter. Mesmo que não tivesse essa perceção mais cedo ou mais tarde iria ocorrer na minha vida. E a poesia esteve sempre presente. Não é possível destituir-me da poesia.
Qual foi a reação da sua família quando decidiu abandonar a advocacia e dedicar-se exclusivamente à literatura?
Na altura foi dramático. Tinha feito o curso numa universidade privada, houve um esforço financeiro, um empenho, uma expetativa para um modo de vida, para a construção de uma profissão, para uma certa segurança de vida (tinha inclusive um patrono que me convidou para trabalhar com ele). Mas percebi que não era o meu percurso e precisava de confrontar a minha família com essa decisão. Foi terrível e redentor. Porque era como se precisasse de atear o fogo sobre alguma coisa que tinha levado tanto tempo a construir. Mas a única forma de reconquistar a felicidade, ou de re-caminhar no sentido da felicidade, era destruindo alguma coisa primeiro. E os meus pais compreenderam isso com alguma rapidez. Os livros acabaram por ser prova para o juízo e não para a loucura.
Como foi a estreia a publicar?
Foi maravilhoso! Foi das coisas mais importantes da minha vida. O livro que publiquei era muito frágil. Hoje não publicaria aqueles poemas. Não está em causa a qualidade do livro. Aquilo que traz à minha vida é de um valor inestimável.
Em termos de influências, quais os autores que gosta de ler? Consegue ler algo não relacionado com o trabalho?
Leio muito, sobretudo ensaios e filosofia e tenho obrigatoriamente de conseguir esse tempo. Porque, por mais que o quotidiano seja uma trapalhada de compromissos eu preciso de regressar àquele instante em que domino um pouco a minha vida e usufruo daquilo que o mundo tem de melhor. Ter tempo para mim, para estar com quem eu gosto, para voltar às minhas pessoas, para voltar a família, aos amigos, às minhas leituras. Adoro comprar livros. Adoro poder descobrir um livro numa livraria, eventualmente de um escritor que não conheço. Das coisas mais violentas que alguém pode fazer é orientar-me numa livraria. É das coisas mais brutas a fazer a um leitor. O dizer “deverias ler isto”. Tenho cada vez mais prazer em entrar e estar sozinho numa livraria e de poder apaixonar-me pelos livros, pela minha própria natureza. Sem qualquer indicação, só pela liberdade de poder escolher o livro.
Precisa de tempo, entre dois livros, para limpar a mente?
Sim, é um período de luto. Os livros perduram no tempo pelo que é fundamental que haja um estágio de passagem. E é a um dado momento desse estágio que estamos a definir a disponibilidade para um novo pensamento, para uma nova estória, para um novo texto. Estamos como que em génesis. É como que um renascimento.
É fácil decidir o fim do livro?
Não é fácil. É um pouco convulso, porque deixamos o livro com uma sensação de abandono, de vazio. Poderíamos exageradamente parasitar aquela estória. O autor poderia parasitar a estória, incapaz de a deixar, de abdicar dela. Mas é um ritual. Ao mesmo tempo há uma satisfação por termos conquistado aquela estória. Por termos sido capazes de positivar, de realizar aquele livro. Embora produza uma tristeza de uma certa despedida propõe também uma liberdade que nos permite uma paixão seguinte. É um constante apaixonamento.
“Receber o prémio Saramago das mãos do próprio foi um retorno”
Que importância teve receber o Prémio Saramago?
Ter recebido o Prémio José Saramago, das mãos do próprio José Saramago, com o discurso apaixonado que ele fez, foi muito importante. Porque há uma espécie de retorno. Como se toda a minha vida de paixão pelos textos me desse uma resposta. Como se o discurso de Saramago personificasse o mundo. E me respondesse e acolhesse, dizendo: “Valter, tu tens um lugar.” Para um autor talvez o que lhe confere um maior sentimento de justiça, de gratificante justiça, seja passar a ser amado por um autor que sempre amou. É o reconhecimento pelos pares.
O que mudou na sua vida com o galardão? 
Após a vitória o caminho amplia-se. O que acontece ao vencedor do Prémio Saramago é que a sua imagem e o seu trabalho é exposto, havendo curiosidade natural por parte dos leitores em saber quem é aquele autor. Há vencedores que mantêm a evidência e outros tornam-se mais discretos. Mas nenhum regressa ao anonimato. É um prémio mudador, brilhante para um novo autor.
Como é que lhe surgem os temas?
Vivo impressionado por algumas coisas. Há assuntos que me são naturais e para os quais estou propenso a estar atento. E há instantes, epifanias, coisas da vida, do quotidiano, os gestos das pessoas. Gosto muito de observar pessoas que não conheço e que nem sei o que estão a dizer. Gosto de ver o movimento, a forma como se movem e gesticulam. É como se as pessoas destituídas do discurso se tornassem uma tela branca na qual posso escrever. Sou muito marcado pela observação das pessoas.
Já lhe aconteceu ter uma visão para uma personagem, mas esta ganhar vida e terminar com outro ângulo?
Sim, acontece de vez em quando, em alguns livros, algumas personagens fazerem inversões no seu percurso que são surpresas profundas para mim. São decisões que o livro toma quase à minha revelia. Como se me deixasse estupefacto. Por exemplo, personagens que tinha como fundamentais para sustentar o livro e que morrem demasiado cedo. São personagens que desaparecem do livro muito antes do que eu poderia supor. Mas cuja morte pode ser essencial para a robustez das outras personagens. O livro tem sobretudo um arranque que podemos orientar, mas depois, e eventualmente se for um livro para dar “certo”, cria a sensação de que é o livro que nos orienta. Deixamos de ter o poder de decidir o próprio livro. E ficamos numa posição em que, de alguma forma, vamos obedecendo à identidade que o livro definiu.
Quando isso acontece não deve contrariar-se. Certo? 
Quando isso acontece é maravilhoso. O momento em que o livro atinge um ponto em que se impõe ao autor é quando ele de alguma forma atingiu a sua velocidade de cruzeiro. Conseguimos dotá-lo de uma dinâmica que depois se alimenta a ela própria e, por isso, tem de haver uma espécie de controlo do ego do autor para que este não se sobreponha à coerência que o livro acabou de estabelecer. É como se subitamente, depois desse esforço inaugural, de plantar uma história, o autor ficasse apenas a cuidar daquilo que germina.
É como se fosse um filho que ganhou independência? 
Ganha independência e não podemos definir tudo. Não podemos contrariar sob pena de destituir o livro de qualquer sentido, de qualquer coerência, de uma dimensão plausível.
Nunca considerou escrever um livro da categoria do fantástico?
Gosto da fantasia, da permissividade, da trama, das ideias, mas não está na minha natureza escrever livros fantásticos.
Mas já experimentou vários géneros literários…
Sim, os géneros literários interessam-me. Como me interessam todas as formas de expressão, todas as formas de arte. Se não faço exposições de pintura é porque não sei pintar. Mas tento ver as exposições dos artistas de quem gosto.
Usa o que apreende na sua obra?
Aquilo que me impressiona em qualquer expressão da humanidade tento traduzir através da literatura. Em certas passagens dos meus livros posso ter usado concetualmente a imagem de algo que vi, algo que presenciei, algo que ouvi ou os gestos de alguém. Muitas vezes não tem a ver com as palavras que as pessoas dizem, mas sim com os gestos. Uma espécie de fisicalidade. Tudo é comunicacional. Se passarmos pelo mundo como observadores o mundo é perfomático. Todas as pessoas estão em performance e, por isso, quando se escreve ou se cria algum tipo de obra artística traduz-se a performance que presenciamos.
Alguns amigos podem rever-se nas personagens dos seus livros?
Muito. Às vezes há uma ou outra figura que é ligeiramente inspirada ou pensada em alguém. Como se fosse uma brincadeira ou uma homenagem a alguma pessoa. Nos meus livros criei pequenas homenagens a algumas pessoas.
E conseguem identificar-se?
Sim. Logo no primeiro romance falo de um senhor Seixas, um pintor que vivia numa pequena aldeia e que era claramente uma homenagem ao pintor surrealista Cruzeiro Seixas.
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