No passado sábado comemoraram-se em Roma os 60 anos da assinatura do Tratado fundador da Comunidade Económica Europeia, antecessora da atual União Europeia. Como é da praxe sempre que há uma data a assinalar, a União engalanou-se para receber com as suas melhores vestes 27 dos seus chefes de Estado e de Governo – o Reino Unido primou pela ausência – e, como também é de regra, foi tornada pública (mais) uma declaração solene para assinalar a data, supostamente para traduzir a vinculação dos líderes europeus aos valores fundamentais da UE e ilustrar o seu comprometimento com esses mesmos valores.
Nessa medida, a Declaração de Roma não veio trazer nada de novo relativamente a outras declarações que a antecederam e que foram aprovadas em outros momentos simbólicos da vida das Comunidades e da União. A semântica pode ter mudado um pouco, mas os objetivos e os compromissos são, basicamente, os mesmos. Isto apesar de o contexto em que esta Declaração foi aprovada ser substancialmente diferente dos contextos que envolveram as declarações antecedentes.
A UE vive há mais de uma década uma crise sem precedentes, e para a qual não se divisa ainda uma saída limpa. A pressão humanitária sobre a União e os seus Estados-membros não encontra paralelo em momento algum da sua história com a crise dos migrantes e dos refugiados, a própria falta de coesão atingiu graus nunca antes vistos, pela primeira vez na sua história a UE é confrontada com a secessão de um dos seus Estados membros – tudo, enfim, a contribuir para um ambiente de crispação, desalento e muito pouca fé no ideal europeu que, há mais de 60 anos, moveu os líderes europeus e os impulsionou para deitarem mãos à obra de edificarem o projeto europeu.
Neste contexto, o que foi proclamado em Roma no passado sábado deve ser minuciosa-mente monitorizado nos tempos mais próximos, por forma a aquilatarmos da sua autenticidade e da sua capacidade para ser efetivamente alcançado no futuro próximo da União. De contrário, repete-se, será mais uma declaração a figurar nos anais das excelentes proclamações com reduzido ou nenhum efeito prático sobre a vida da União Europeia.
Curiosamente, as celebrações deste 60º aniversário do Tratado de Roma iniciaram-se na passada sexta-feira com uma audiência geral concedida no Vaticano, pelo Papa Francisco, a todos os chefes de Estado e de Governo presentes em Roma. Não deixa de ser uma curiosidade sobretudo se nos lembrarmos que, há cerca de dez anos, quando se discutia o projeto de Tratado Constitucional para a União, foram muitas as vozes que se levantaram (erradamente) contra a consagração no seu Preâmbulo de uma referência às origens cristãs da Europa. Os factos, uma vez mais, encarregam-se de corrigir a semântica.
Ora, nesta audiência concedida aos líderes europeus, Francisco voltou a reafirmar a posição da Igreja Católica face ao projeto europeu, retomando muitos dos ensinamentos que começaram a ser teorizados pelo saudoso e de boa memória João Paulo II, nomeadamente chamando a atenção para os inúmeros problemas sociais que afetam a Europa dos nossos dias, convocando a atenção dos governantes europeus para valores como a solidariedade e a coesão social, apelando àquilo que, entre nós, Adriano Moreira vem classificando como a necessidade imperiosa desta União Europeia substituir o credo nos mercados pelo credo nos valores.
Doravante, quem quiser estudar e refletir o acontecido nesta comemoração dos 60 anos do Tratado de Roma, não poderá deixar de estudar, em simultâneo, a declaração formal aprovada pelos chefes de Estado e de Governo e o discurso de Sua Santidade a esses mesmos governantes. Os textos completam-se, complementam-se, e são as duas faces de uma mesma moeda. Pondo em evidência, por muito que isso custe a uns quantos, que a doutrina social da Igreja constitui, cada vez mais, um dos pilares fundamentais em que se alicerça o espírito europeu, o ideal europeu, a ideia de Europa que presidiu e sempre esteve subjacente à construção do projeto europeu simbolizado pela União Europeia.
Hoje, a primeira-ministra Theresa May acionará formalmente o célebre artigo 50º do Tratado de Lisboa, dando cumprimento ao decidido pelos britânicos em junho passado, através de referendo. Cumpre-se, assim, o paradoxo histórico de alguém que fez campanha a favor da permanência do Reino Unido na União Europeia ascender à chefia do governo de Londres para, fundamentalmente, curar de separar o Reino da União. É uma contradição e um paradoxo que a História não deixará de registar, e que iniciará um período que dificilmente será pacífico no relacionamento da UE com o RU, tantos e tão diversificados e complexos serão os dossiês que, nos próximos dois anos, estarão em cima da mesa para serem negociados.
Mas se a tarefa de Theresa May se afigura árdua na frente externa, não se afigura mais fácil na frente interna. Se na frente externa o seu desígnio será separar o Reino da União, na frente interna será precisamente o contrário: manter unido um Reino que se mostra cada vez menos unido. E até se pode vir a dar o caso de, para manter o Reino unido, ter de abdicar da separação da União. Ou, pelo contrário, de vir a ficar para a História como a pri¬meira-ministra que, para concretizar a separação da UE, criou as condições para a desunião do Reino. Não vão ser fáceis os dias, nem as escolhas, que Theresa May tem pela frente.