As eleições no Brasil permitiram uma excelente radiografia do espaço público português. À direita e à esquerda, mas sobretudo à esquerda. Na política e na comunicação social. Nos palácios e nas ruas. Nos meios tradicionais e nos novos media. Foi um período revelador.

Tudo começou com a tentativa de santificação de Lula. Em julho, o homem era um perseguido político, não um corrupto condenado. No auge do delírio, 22 deputados portugueses, a quem nunca se ouviu um discurso anticorrupção, decidiram escrever uma carta apelando à libertação do ex-presidente brasileiro que, rezava a lengalenga, tirara da pobreza (e da insegurança, esqueceram-se de acrescentar) milhões de compatriotas. Uma corja de ingratos, sabe-se agora, capazes de votar num “fascista”.

Mais tarde, já o ‘perigo’ Jair Bolsonaro tinha sido interiorizado, a telenovela prosseguiu com uma foto de 18 deputadas em manifestação de género: “Ele não”.

Um dia, para desilusão pessoal, a coisa chegou mesmo a Belém, onde Marcelo Rebelo de Sousa acordou com “notícias desagradáveis”. Sim, o mesmo Presidente da República que se quis despedir de Fidel Castro e se senta ao lado de Obiang na CPLP.

Entretanto, começaram os concursos de antifascismo. Em artigos e declarações sucessivamente mais pungentes, figuras destacadas da piolhice nacional, imunes à tragédia venezuelana, decretavam como o Brasil entraria numa longa noite caso Bolsonaro viesse a ser eleito.

O jornalismo, salvo raríssimas excepões, associou-se à histeria. O tema tornou-se quase único. Nas redes sociais, órfãos da FarmVille, malta sem habilidade para os eSports e muitos exibicionistas exauridos de novidades para partilhar sobre a vida feliz e fantástica que levam, escolheram a equipa para defrontar o ‘inimigo’. É desta fase a minha coleção de screenshots assinados por pataratas conhecidas e conhecidos. Um passatempo para memória futura.

Estamos agora na fase em que a direita portuguesa, eufórica, aguarda um milagre na capacidade intelectual de Bolsonaro e a esquerda, para além de surpreendentes erupções xenófobas contra brasileiros a trabalharem em Portugal, decreta que “a luta continua”, processo em que os nossos revolucionários não são capazes de colocar nem a humildade nem a simplicidade dialética de José Mujica.

Saio das eleições brasileiras com medo da sociedade portuguesa, da falta de capacidade e bom senso de muitos dos decisores que alimentamos; desta gente que parece ter desligado o cérebro depois do golpe de Estado de 25 de Abril de 1974 e aí acampado para sempre, entre ódios e preconceitos, fechando os olhos à corrupção da respetiva família político-partidária. Já nem a extrema-esquerda, anestesiada pela geringonça, lê sequer Hervé Kempf, o que daria pistas inteligentes para combater Bolsonaro, principalmente na sua perigosa visão de “desenvolvimento” à custa da sustentabilidade ambiental e da ameaça à floresta da Amazónia. Democracia e ecologia são hoje inseparáveis.

Confesso que também me lembrei de Kempf, e da sua teoria da deriva ocidental do capitalismo para a oligarquia, formada por partidos, famílias e seitas, na qual a finança vai colocando os políticos por conta, a propósito do novo cargo de Marques Mendes, na assembleia-geral da CGD-Angola. Visto por vários ângulos, o país não anda nada bem.