A pouco e pouco, Portugal foi-se adaptando. Primeiro, ao nepotismo. Depois, aos casos de corrupção. Agora, com a legislatura a terminar, aos contratos dos familiares de cargos políticos com o Estado.

Tudo parece estranhamente normal, até porque, como é tradição nossa, começa a aparecer a literatura que relativiza a doença apontando o dedo ao maldito ‘populismo’, ao ‘fascismo’ e aos ‘direitolas’. É um filme já visto: no passado, a direita também resolvia os seus dramas com as palavras ‘comuna’, ‘esquerdalho’ ou ‘terrorista’. Agora, necessitada, é a vez da esquerda desenvolver a sua forma de celebração litúrgica em que os fiéis abdicam de qualquer dúvida: há uma guerra entre ‘nós’ e ‘eles’.

E, assim, protegido pela fé, o PS, sentado no meio do naufrágio da ética política, com protagonistas investigados pela Justiça em casos sucessivos, alguns já condenados, não só aparece à frente em todas as sondagens para as próximas eleições, até muito perto de uma maioria absoluta, como tem o seu líder, António Costa, a procurar afirmar-se como o líder da luta anticorrupção.

O caso é estranho. Por um lado, temos um partido que se apropriou do Estado. Por outro, somos uma sociedade incapaz de pedir responsabilidades políticas. O drama, para Portugal, não é que a direita se afunde nas sondagens. Ou que Rui Rio tenha resolvido fazer aquilo que os líderes dos partidos sempre fizeram perante o espanto dos basbaques. Ou que Assunção Cristas seja politicamente irrelevante. O drama é que todos eles, mais o PCP, o Bloco e os outros, pareçam inertes ou coniventes com esta vergonhosa realidade.

Portugal está mergulhado numa crise. O PS é o Estado. O Estado é o PS. António Costa, para ganhar tempo entre a última crise e a mudança da lei das incompatibilidades e impedimentos dos titulares dos cargos públicos, que já sabia viria aí – e veio! –, pediu uma aclaração à PGR. Em sintonia de estratégia, o ministro Santos Silva acrescentou que “seria um absurdo uma interpretação literal da lei de 95”.

O PS tenta a qualquer custo evitar o escândalo de mais demissões no Governo, agora a propósito do caso que envolve o atual secretário de Estado da Proteção Civil e os negócios que a empresa do filho celebrou com o Estado no valor de mais de dois milhões de euros, na Universidade do Porto e na Câmara de Vila França de Xira. Ou, surpresa das surpresas(!), da ministra da Cultura, que também faz parte do capital social da empresa do pai e do irmão, beneficiária de um ajuste direto com a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Ambos se vieram juntar ao afã empresarial de Eduardo Paz Ferreira, marido da ministra Francisca Van Dunem, que já soma 25 contratos e um milhão de euros. E há mais.

Como se vê, depois da família de Carlos César, da consanguinidade do Governo, que envolve pelo menos 12 famílias e dezenas de pessoas, do caso José Sócrates e de problemas em várias autarquias e empresas públicas, o PS continua a provar que a democracia, na circulação do dinheiro, na comunhão de interesses, na proteção da família e dos amigos, por vezes não consegue distinguir-se de regimes totalitários. É uma infelicidade que a cidadania pareça conviver razoavelmente bem com esta realidade. Também diz do país que ainda somos.