Uma das consequências – não queridas nem previstas – da atual crise vivida na Catalunha e, por extensão, em Espanha, tem a ver com o recurso improvável à figura do mandado europeu de detenção como o instituto jurídico a que as autoridades judiciárias espanholas tiveram de deitar mão para tentarem reconduzir o ex-Presidente da Generalitat, Carles Puigdemont, e quatro ex-conselheiros do mesmo governo autonómico, a solo espanhol depois de, em manobra de cobardia política sem igual, os mesmos, após terem proclamado a República na Catalunha, terem abandonado Espanha refugiando-se no sempre imprevisível e pouco fiável Reino da Bélgica.
No início desta crise, poucos seriam os que prognosticariam que se chegaria a ponto de ter de recorrer a este instituto jurídico para fazer cumprir a Constituição espanhola e repor a legalidade violada na Catalunha.
A figura do mandado europeu de detenção, recordemo-lo, teve na sua origem a ação do Comissário português António Vitorino, à data membro da Comissão Europeia, como reação aos atentados do 11 de setembro e visou o estabelecimento de um sistema simplificado de cooperação entre as autoridades judiciárias dos Estados da União Europeia para fazer face ao terrorismo e demais criminalidade violenta, organizada e transnacional. Surgiu como um mecanismo alternativo e muito mais expedito à figura da extradição a qual, além de mais morosa, tinha sempre uma dimensão política ou de intervenção dos decisores políticos, que se pretendeu completamente alheada e afastada do novo regime jurídico comunitário. O mandado europeu ficou reservado, apenas e em exclusivo, para as autoridades judiciárias e como o instituto por excelência de cooperação dessas mesmas autoridades no combate à grande criminalidade transnacional.
Os pressupostos de aplicação deste mecanismo, porém, não são automáticos. É necessário que se verifique um conjunto de requisitos para o recurso ao mandado europeu se poder tornar efetivo. Desde logo, é imperioso que os crimes pelo qual o sujeito do mandado é procurado constem da lista de 32 crimes previstos na diretiva europeia; a diretiva enuncia e elenca os ilícitos que, quando cometidos, poderão justificar a emissão de um mandado europeu de detenção. Essa lista é taxativa e está circunscrita a 32 crimes. Já não é, portanto, necessário que o ato seja uma infração penal em ambos os países. O único requisito que se exige é que o ato ilícito seja punível com, pelo menos, 3 anos de prisão no país emitente do mandado. Por outro lado, qualquer Estado só se pode recusar a entregar a pessoa procurada se a pessoa já foi julgada pelo mesmo crime (princípio do ne bis in idem), se a pessoa for menor e não tiver atingido a idade de responsabilidade penal no país de detenção ou se tiver sido amnistiada no país onde esta detenção deve ocorrer. Facultativamente, a inexistência de dupla incriminação por crimes que não os 32 identificados na diretiva, questões de jurisdição territorial, a existência de ação penal pendente no país de execução ou a prescrição podem, também, fundamentar a recusa da entrega do sujeito objeto do mandado europeu de detenção. Resta ainda observar que o sujeito sobre quem incide o mandado europeu pode conformar-se com ele – caso em que deve ser entregue ao Estado emitente do mesmo no prazo de 10 dias – ou pode impugná-lo, correndo essa impugnação ante as autoridades do país de destino do mandado – caso em que este terá um prazo de 60 dias, prorrogável por mais 30 dias em casos complexos, para deter o sujeito e entregá-lo ao país que emite o referido mandado.
Daqui se constata que a execução deste mandado não se pode ter por adquirida aprioristicamente. Nem a sua eventual rejeição poderá constituir surpresa de monta.
Razões para isso? Essencialmente uma – Espanha ter querido remeter para o domínio do judicial a resolução de um problema, a eventual independência da Catalunha, que é exclusivamente do foro político. Este erro ou vício não é de agora nem das últimas semanas. É de há muitos meses ou anos. As autoridades de Madrid não têm encontrado melhor forma de lidar com a questão catalã do que remetê-la para o âmbito dos tribunais, judicializando o conflito que é, e será, político.
A emissão deste mandado europeu de detenção contra Puigdemont e seus comparsas desta ópera bufa é o último passo nessa deriva irresistível das autoridades espanholas – enfrentar os secessionistas não no campo político, mas nas salas de audiência dos tribunais. É um erro crasso e uma asneira tremenda. No imediato, pode dar a sensação de constituir uma vitória e um sucesso. Quando despertarem dessa ilusão e acordarem desse sonho, constatarão que os problemas estão lá, no mesmíssimo sitio onde estão hoje, eventualmente ainda mais agravados. Porque organizar um processo eleitoral com as principais figuras de uma das bandas detidas, não é experiência que se aconselhe nem que se recomende. Madrid tinha obrigação de saber disso.