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“Orçamento deve continuar a promover a paz social”

Nomeação de deputado do PS para vogal da ERSE é injustificável, diz o advogado, que vai criar a Propública para defender o interesse público em temas como as ajudas à banca e as “rendas” da energia.
28 Outubro 2018, 12h00

Ao fim de 31 anos, Agostinho Miranda prepara-se para deixar de ter um papel ativo na gestão da sociedade de advogados que fundou.  Em entrevista ao programa Decisores, que é transmitida esta sexta-feira, às 11h00, no site e nas redes sociais do Jornal Económico, o advogado defende que o próximo Orçamento do Estado deve continuar a promover a paz social, de maneira a proteger Portugal do populismo que grassa noutros países e a reduzir as desigualdades. Critica a escolha do deputado socialista Carlos Pereira para administrador da ERSE e revela que a associação que está a criar, chamada Propública, vai dedicar-se à defesa do interesse público em assuntos como as ajudas à banca e as chamadas rendas energéticas.

Na próxima semana temos a apresentação do Orçamento do Estado. O que espera do Orçamento para 2019?

Do que eu tenho lido, se calhar vai ser mais do mesmo. As pessoas chamam-lhe de eleitoralismo. No entanto, encoraja-me tratar-se de um OE apoiado por quatro partidos, encoraja-me o facto de ser um orçamento que contribuirá para diminuição do défice orçamental e encoraja-me a circunstância de ser um orçamento de continuar a trabalhar no sentido da paz social. As soluções políticas que nós temos conseguido, seja o populismo benévolo do nosso Presidente, seja o equilíbrio frágil da ‘geringonça’, a verdade é que temos conseguido um equilíbrio social que merece o estudo de observatórios e das universidades, e que é das poucas formas de responder criativamente à ameaça brutal do populismo que está a surgir em todo o mundo.

Ou seja, é preciso manter a paz social. Mas também pode ser conseguida com um acordo à Direita (com o PSD de Rio).

Claro que sim, temos que ser inovadores nas soluções. Agora, este modelo que temos desde há três anos, tem resultado e tem criado a perceção de que estão a ser diminuídas as desigualdades através da redistribuição fiscal, embora continuem a ser dramáticas no nosso país.

Conhece bem o setor energético. Como vê a nomeação de um deputado socialista, Carlos Pereira, sem experiência nessa área, para vogal do regulador da energia, a ERSE?

O que me deixa mais perplexo não é tanto o facto de ser socialista. À partida, as pessoas filiam-se nos partidos para servir o bem público. A falta de experiência no domínio do pelouro pelo qual vai ser responsável é preocupante. Eu já ouvi amigos meus socialistas, com bastantes responsabilidades, dizerem que não havia outra pessoa para o cargo. Eu lamento muito, isso não é uma justificação aceitável; os headhunters existem também para procurar bons candidatos. O único critério que deveria ser utilizado é o critério da competência, o critério do mérito e, neste caso, o critério da causa pública.

A Miranda & Associados está a passar por uma fase de transição, com a eleição de uma nova equipa de gestão [liderada pelo atual managing partner Diogo Xavier da Cunha] e na qual o senhor, embora mantendo o estatuto de sócio fundador, já não terá um papel ativo. Para si, o que representa esta passagem de testemunho, em que deixa de ter um papel na gestão da firma que fundou?

Sinto-me muito bem. Isto foi um processo preparado há vários anos. Tudo na vida tem um começo e um fim – a própria vida também o tem. Temos a responsabilidade moral de abrir espaço para os mais novos. A nossa firma, nesse domínio, tem um leque muito vasto e até já tem millenials a aceder à gestão da firma, nomeadamente no conselho de administração. Portanto, vejo o futuro com muita tranquilidade. Temos aumentado o número e a importância dos clientes, o mesmo acontecendo com os mercados, designadamente na África francófona, onde temos maior presença em comparação com a África lusófona.

Como imagina o escritório dentro de cinco anos?

Temos um plano estratégico a dez anos, como qualquer organização da nossa dimensão. Do ponto de vista pessoal, diria que nos próximos cinco anos faremos de forma mais acelerada aquilo que fizémos nos últimos três. Isto diz respeito à expansão da nossa cobertura geográfica. Iniciámos trabalhos e representação de clientes num novo país a cada a ano. Atualmente, a nossa atenção centra-se nos países africanos de expressão francófona, ou seja, países que tenham recursos naturais, como o petróleo, e, por isso, têm a necessidade de construir infraestruturas de grande escala. Focamo-nos em toda a arquitetura jurídica inerente a esses projetos, que passam, por exemplo, por financiamentos e pelo dia-a-dia operacional.

Estamos a falar de países como o Congo Brazaville?

Sim, mas não só. Estamos a falar também da República Democrática do Congo, do Gabão, dos Camarões e da Costa do Marfim.

Nesses países, os vossos clientes, além dos grandes players internacionais na indústria do petróleo, são também os governos locais?

Não. Temos uma política muito estrita de não representar os governos locais com os quais os nossos clientes negoceiam. A única exceção a esta regra, por motivos históricos, é Timor Leste.

O seu escritório teve uma cisão há alguns anos, com a saída de vários sócios [liderados por Rui Amendoeira, antigo braço-direito de Agostinho Miranda] para outra firma. Ultrapassado o choque inicial, a Miranda  ficou mais forte, no sentido de mais unida, depois dessa cisão?

Há quem diga que as más notícias do futuro estão escondidas no presente. Nós tínhamos a perceção de que uma parte dos nossos associados não estavam alinhados com o valor da firma. Numa organização com a dimensão da nossa, com quase 300 colaboradores [dos quais 200 são advogados, com 23 sócios] todos têm de estar alinhados com os valores da firma. Essa cisão foi uma grande oportunidade para testar a nossa resiliência mas também para criar outras possibilidades para os jovens advogados subirem na carreira. Contribuiu para a renovação da estrutura, contratarmos mais talento e criarmos novas oportunidades.

Mas do ponto de vista pessoal, foi um processo doloroso, uma vez que estamos a falar de pessoas que trabalharam convosco durante muito tempo…

Sim, foi um processo que teve custos pessoais. Mas penso que, nesta profissão, temos de ter os valores certos e não nos entregarmos a estados de alma excessivos, porque toldam o nosso julgamento.

Face ao aumento de atividade na África francófona, prevê que a equipa seja aumentada?

Estamos sempre à procura de novos talentos, até porque a advocacia que se pratica nesses mercados é complexa, pois requer um profundo conhecimento das realidades jurídica e política. Por isso, estamos sempre à procura de novos talentos.

Mas fazem isso através do crescimento orgânico, indo buscar jovens às universidades ou admitem integrar outras firmas?

Ao longo destes três anos, temos feito as chamadas integrações laterais e temos aprofundado o recrutamento de jovens às universidades que têm de corresponder a um perfil muito específico de trabalho internacional.

Como é que descreveria esse perfil? Falar francês será necessariamente um dos critérios…

Falar francês é uma condição essencial e até temos recrutado em França. Mas, tipicamente, nós procuramos jovens interessantes e interessados. A ideia é sempre a de alguém que não se acomoda, alguém muito interessado à cultura do mundo por oposição à cultura meramente académica e pessoas que estão muito dirigidas para as soluções dos clientes.

Os millenials reúnem essas características?

Tem que se dizer que há uma diferença assinalável entre o currículo de ensino das universidades e as necessidades das organizações como a nossa. Mas ainda assim, os millenials são provavelmente o depósito de talento mais extraordinário que eu vi durante os meus quarenta anos de profissão.

Foi um dos protagonistas do surgimento da advocacia de negócios em Portugal no pós-25 de Abril. Como vê a qualidade dos jovens advogados de hoje por comparação com os de há 30 ou 40 anos?

Os millenials são definitivamente melhores. São muito melhores numa série de competências mas estão menos preparados pelas escolas para outras competências. Aos millenials. é-lhes mais fácil tratar de informação que provem de diversas fontes e fazer a síntese e encontrar a solução. No entanto, são menos bons no aprofundamento das questões, na intensidade da procura da solução mais profunda e por isso mais sólida – cansam-se mais facilmente, o que se compreende, porque têm uma linguagem digital. Cansam-se mais facilmente numa investigação mais sólida, mais profunda e mais inovadora. E acresce outro fator que é que por vezes o detalhe, aquele toque aprimorado não está lá. Um advogado é um profissional dos detalhes.

É possível combater essa falta de preparação?

É perfeitamente possível. O que se exige às organizações como a nossa é que tenham programas estruturados de formação e de conhecimento. Espero aliás continuar a ser um protagonista na minha firma nesse esforço.

Como é que acha que a confiança das firmas como a Miranda vai ser projetada no futuro quando o sócio fundador se retira?

Voltando ao tema das escolas, temos boas escolas que formam bons advogados. Mas, onde temos de progredir muito é no capital organizativo. Isto é, as firmas têm que ser geridas por profissionais de gestão e não por advogados.

Ou seja, os advogados têm que estar disponíveis para ceder a gestão de firmas a gestores que nem sequer são sócios?

Absolutamente, têm de o fazer. E o futuro destas organizações depende muito disso. Agora, no que toca à sucessão, eu penso que anda mal quem não tiver um plano de sucessão. Nós estabelecemos esse plano há vários anos atrás e esse plano tem que ser parte da cultura da firma, porque ninguém é indispensável e todos são importantes. Claro que isso exige uma certa dose de modéstia, é preciso que as pessoas compreendam que, mesmo tendo muita experiência e uma boa carteira de clientes, o seu tempo já foi. Nem sempre temos a mesma equidade de julgamento, a mesma energia ou a capacidade de diálogo, o que é muito importante para o sucesso deste tipo de organizações.

Quais são as áreas que vão ‘explodir’ no futuro para as firmas de advogados?

Há dois tipos de resposta. Do ponto de vista geral, todas as áreas susceptiveis de computação e de serem capturadas pelos novos modelos de inteligência artificial, essas áreas correm o risco de desaparecerem. Tudo o que seja reconduzível a um algoritmo, tem desaparecido. Primeiro as secretárias, depois os paralegals e até os advogados que fazem trabalho repetitivo, designamente, os associados. Mas vai aparecer a necessidade de haver advogados com outras competências, por exemplo, com formação matemática porque nos domínios da robótica e da inteligência artificial já estão a surgir problemas que nem mesmo as universidades até agora pensaram.  Não vai haver apenas uma redução de espaço para os advogados, vai também aumentar numa proporção ainda maior. Dito isto, no plano estritamente pessoal, se eu tivesse agora 30 anos, constituiria uma boutique apenas dedicada ao contencioso. E digo isto por uma razão muito simples: se eu tivesse 30 anos, quereria trabalhar numa área não dominada pelos grandes agentes de mercado e pelas auditoras.

Ou seja, áreas onde um pequeno escritório pode fazer a diferença?

Sim, aliás é isso que está a acontecer nos Estados Unidos. De longe, os advogados que ganham mais dinheiro lá são os advogados de contencioso e que no dia-a-dia vão aos tribunais. E, neste âmbito, uma das grandes penas que eu tenho é de não deixar um legado institucional na Miranda com um departamento de contencioso penal e contra-ordenacional que, apesar de o fazermos, não é compaginável com a dimensão da firma. E o responsável por isso sou eu.

Que balanço faz da vossa presença no mercado português?

Um terço da nossa atividade resulta daquilo a que chamamos de jurisdição Portugal. Temos crescido, graças a um esforço contínuo dos meus sócios responsáveis pela jurisdição Portugal. Em 2017, crescemos mais de 20%.

E em que áreas é que têm crescido? Na fiscalidade?

A fiscalidade é uma área importante, mas não é a mais importante. Temos crescido em direito laboral, nas fusões e aquisições, em direito da energia, e noutras áreas para as quais contratámos sócios e fizemos as tais integrações laterais, mas também advogados com larga experiência, por exemplo, no setor financeiro.

Há outras áreas onde admitem fazer novas integrações de escritórios mais pequenos?

Absolutamente. Estamos a trabalhar ativamente nesse sentido.

E em que áreas específicas?

Porventura… há pouco falei de uma área em que queremos fazer mais do que estamos fazer que é a área de contencioso, nomeadamente, contencioso penal. Mas há outras e estamos em discussões com um pequeno escritório que provavelmente trará os frutos que nós (pretendemos).

Na área de contencioso?

Não, em áreas mais vastas.

Agora que vai ter mais tempo livre, admite voltar às suas  ‘paixões’ laterais à advocacia?

O meu programa será continuar a trabalhar e responder enquanto sócio fundador a todas as solicitações que me sejam feitas pela minha firma e pelos meus sócios, mas a uma cadência muito menor do que a que tive até agora. O que eu vou fazer? O meu maior sonho é fazer a volta a Portugal em bicicleta [nota: é ciclista amador], algo que ando a querer fazer há muito tempo. De resto, quotidianamente, quero ler e escrever, gosto de escrever sobre matérias de atualidade. E tenho outros projetos, vou gravar um disco, que me dará muita satisfação, mas também ao meu filho e netos. Tenho um projeto que será designado “Propública”, que será uma plataforma agregadora de jovens advogados, com o objectivo de representar o interesse público em situações em que houve dano social. Não será pro bono, provavelmente. Eu acredito no conceito do altruísmo eficaz e muitas vezes é preferível contratar alguém que faz melhor do que nós e por isso acredito que será um pretexto para ocupar de forma remunerada os jovens advogados que querem defender causas públicas. Por exemplo, recentemente tivemos um incêndio na Serra de Sintra e há cerca de dez anos, a minha sociedade representou a ONG, Salvar Sintra, numa base pro bono. E foi através da representação da Miranda que foi possível não permitir a construção do Abano [urbanização inicialmente prevista com 120 moradias unifamiliares de que ainda foram construídas cerca de metade].

O tema das rendas energéticas, é um dos assuntos que poderão interessar à Propública?

O tema das rendas energéticas poderá interessar porque é uma situação em que o Direito e a Justiça parecem estar afastados. Esse tipo de situações interessa-nos, como também nos interessará o facto de os contribuintes dos portugueses estarem a pagar as dívidas de bancos que, entretanto, faliram. Os contribuintes portugueses têm 15 mil milhões de euros para pagar, provavelmente. São temas que vão ser objeto de estudo e nos quais nós iremos intervir, porque entendemos que essa é a nossa responsabilidade.

Mas esta é uma plataforma apenas da Miranda ou querem alargar a outros escritórios?

Não, e eu gostava de deixar bem claro que isto é um projeto pessoal, com sede e staff próprios e que nada terá que ver com a Miranda. Vai funcionar como uma associação, embora ainda não tenhamos decidido se vai pertencer a uma fundação. Desde que anunciei a criação da “Propública”, fiquei impressionado com o número de advogados, que já ascende a várias dezenas, que se disponibilizaram para participar e em defender o interesse público. Mas isto é uma iniciativa de caráter privado.

Artigo publicado na edição Nº 1958 do Jornal Económico, de 12 de outubro de 2018

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