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Personalidades JE: Cunhal – O “Príncipe” da URSS

Não é possível saber tudo o que Álvaro Cunhal fez no seu percurso político internacional. Certo, é que as chefias soviéticas de topo trataram Cunhal com honras de Estado, desde o salário que lhe atribuíram, às casas destinadas a instalar a sua família e a sua secretária em Moscovo.
  • O presidente soviético Leonid Brejnev com Álvaro Cunhal
14 Novembro 2020, 14h15

O Jornal Económico escolheu 30 personalidades dos últimos 25 anos que marcaram, pela positiva e pela negativa, a atual sociedade portuguesa: políticos, empresários, gestores, economistas e personalidades da sociedade civil. A metodologia usada para compilar as Personalidades JE está explicada no final do texto.

A marca que Álvaro Barreirinhas Cunhal (Coimbra, 1913 – Lisboa, 2005) deixou na sociedade portuguesa, na Europa, no conjunto dos países da antiga União Soviética e no mundo comunista é mais profunda, relevante e presente que toda a influência exercida até hoje pelo conjunto dos líderes portugueses do PCP. Morreu há 15 anos mas ainda é muito cedo para se saber tudo sobre Cunhal – para além da recolha biográfica exaustiva que os seus principais historiadores têm feito com grande rigor cronológico, sendo provável que muito mais haja por revelar sobre o seu percurso político internacional. Mas, pelo que já se sabe, pode afirmar-se sem dúvidas que a estrutura dirigente soviética tratou o líder comunista português como um verdadeiro “Príncipe” da ‘Nomenklatura’ da URSS.

Efetivamente, não é fácil aferir o alcance prático de tudo o que Cunhal fez na sua longa carreira política – muito estudada e escrutinada pelo seu principal biógrafo, José Pacheco Pereira, nos cinco extensos volumes que consagrou ao orientador histórico do PCP –, mas também não será errado admitir que toda a realidade política, económica, social e geográfica do mundo português teria sido completamente diferente sem a influência global que o líder comunista português exerceu durante os 92 anos da sua vida.

Pela investigação efetuada por Pacheco Pereira na biografia de Cunhal, sabe-se que o Comité Central (CC) do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) tratou Álvaro Cunhal ao mais alto nível da ‘Nomenklatura’ soviética, correspondente ao tratamento davam a um estadista.

Provas disso? Explica a obra de Pacheco Pereira que “Cunhal enviou um pedido formal para o Departamento Internacional do PCUS, que, a 14 de Setembro de 1961, o comunica ao CC, sendo aprovado dois dias depois. O objetivo era instalar Cunhal, Isaura e a filha Ana, prestes a chegar” a Moscovo.

Honras de Estado e alto salário

“Em 1961, é-lhe atribuído um salário de 500 rublos, mais 150 para a sua secretária (por comparação, Francisco Miguel recebia 180, Margarida Tengarrinha 130 e os participantes portugueses em cursos na URSS recebiam 180, o salário tipo de um operário qualificado), e estava autorizado a frequentar o refeitório do Kremlin reservado aos membros do Politburo”, refere a biografia.

“O acesso ao refeitório tinha grandes vantagens porque aí se podiam comprar, a preços muito baratos, géneros que não se encontravam noutros locais. Ocasionalmente recebia prendas do PCUS de elevado valor pecuniário, como a que lhe foi atribuída por decisão do CC do PCUS pelo seu quinquagésimo aniversário, no valor de 200 rublos”, adianta.

No topo da ‘Nomenklatura’

Cunhal usava também um carro do Estado para as suas deslocações em Moscovo. Foi-lhe atribuído um apartamento de três assoalhadas, mais um de uma assoalhada para a sua secretária, correndo as despesas com móveis a cargo do PCUS. Ter três assoalhadas colocava Cunhal no topo da hierarquia da ‘Nomenklatura’, refere o trabalho de Pacheco Pereira.

“Nem sempre é fácil fazer comparações com outros dirigentes comunistas exilados, porque as situações são muito distintas, envolvendo realidades familiares especiais. Era o caso de Luís Carlos Prestes, chegado em 1971. Com uma extensa família, Prestes recebia menos do que Cunhal (300 rublos), mas os seus nove filhos e mulher estavam alojados a expensas do PCUS. Enquanto não lhe foi atribuída uma residência, Cunhal viveu em vários hotéis do partido, que também usava para os seus encontros políticos. Mesmo depois, durante toda a sua estadia moscovita, Cunhal continuava a usar os hotéis, em particular o Oktyabrskaya Hotel e o Sovietskaia, onde se encontrava com outros dirigentes estrangeiros, como Amílcar Cabral. Na resolução do Secretariado do PCUS de 16 de Setembro de 1961 é-lhe atribuído um ‘apartamento de três assoalhadas’, mais um de uma assoalhada para a sua secretária, sendo as despesas com móveis a cargo do PCUS. Essa primeira casa, um apartamento num 5.º andar na Avenida Lenine, a Leninsky Prospekt, uma das avenidas largas de Moscovo, foi descrita por Cunhal a Francisco Ferreira como ‘um bom apartamento para três pessoas’, tendo escolhido a mobília acompanhado por um funcionário do partido soviético. A referência constante ao espaço da casa compreendia-se numa cidade que conhecia uma aguda crise de alojamento, em que o espaço de uma habitação era um dos sinais mais importantes de status social. Ter três assoalhadas colocava Cunhal no topo da hierarquia da Nomenklatura do PCUS. Usava para correspondência um apartado como caixa de correio em nome de ‘António de Sousa’. Só em finais de 1964 é que Cunhal vai habitar um outro apartamento igualmente espaçoso, um passo acima do anterior em termos de Nomenklatura, com quatro assoalhadas em Vorobyovskaya Shossé, perto da Universidade de Lomonosov”, narra o seu principal biografo.

Pai advogado e mãe católica

Álvaro Cunhal nasceu em Coimbra, na Sé Nova, três anos depois da implantação da República. Filho do advogado, professor e republicano, Avelino Henriques da Costa Cunhal e de Mercedes Simões Ferreira Barreirinhas Cunhal, convictamente católica. Além de político foi escritor e pintor. Mas, sobretudo, foi opositor ao Estado Novo.

Dedicou a sua vida ao mundo comunista, onde o PCP foi o centro de tudo. Depois da infância passada em Seia, veio para Lisboa aos 11 anos de idade, passando a estudar primeiro no Liceu Pedro Nunes e depois no Liceu Camões, segundo os elementos biográficos divulgados pelo PCP. Seguiram-se os anos da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e a adesão ao ativismo revolucionário, filiando-se no PCP aos 17 anos.

Corria o ano de 1931 quando aderiu ao Socorro Vermelho Internacional e à Liga dos Amigos da URSS. Em 1934 já representa os estudantes no Senado da Universidade de Lisboa e no ano seguinte é nomeado secretário-geral da Federação das Juventudes Comunistas. No ano da eclosão da Guerra Civil espanhola – em 1936 – visitou a URSS, sendo de imediato indicado pelo PCUS para integrar o Comité Central (CC) do PCP.

Escreveu regularmente no Avante, em O Militante, em O Diabo, e na revista Seara Nova. Quando cumpria a sua segunda pena de prisão, em 1940, foi chamado a defender a sua tese de licenciatura do curso de Direito, sobre a “despenalização do aborto” – na qual, apesar da incomodidade do tema para o regime, obteve 16 valores, tendo Marcello Caetano entre os membros do júri. Para esse efeito, recebeu escolta policial na deslocação da prisão à faculdade.

No total das penas que cumpriu, esteve 15 anos preso. Cumpriu oito anos de prisão em isolamento total e nos registos efetuados nas suas fichas policiais é referido que nunca falou quando foi submetido a torturas. Na prisão, traduziu e ilustrou a obra de Shakespeare, “Rei Lear”, e escreveu, entre outros, o romance “Até Amanhã, camaradas”, assinado com o pseudónimo Manuel Tiago.

A 3 de janeiro de 1960 concretiza, juntamente com outros presos, a operação que ficou conhecida como a “Fuga de Peniche”, provavelmente a mais célebre evasão consumada numa prisão em Portugal. Seguiram-se os anos do circuito internacional organizado pelo PCUS, que começou por Moscovo. Essa altura coincide com a sucessão a Bento Gonçalves no cargo de secretário-geral do PCP, que se prolongou de 1961 a 1992, altura em que cedeu o cargo a Carlos Carvalhas.

Presidente por pouco tempo

“No XIV Congresso do PCP, em 1992, no quadro de renovação e nova estrutura de direção deixou de ser Secretário-geral e foi eleito, pelo Comité Central, Presidente do Conselho Nacional do PCP. Em dezembro de 1996, no XV Congresso do PCP, extinguiram o Conselho Nacional, manteve-se membro do Comité Central do PCP”, explica o mesmo partido.

Durante o seu longo “caminho”, o mundo comunista notou a importância que Cunhal teve para Moscovo – que o condecorou com a “Ordem da Revolução de Outubro” –, sobretudo no emblemático ano de 1968 em que lhe atribuíram a presidência da Conferência dos Partidos Comunistas da Europa Ocidental, e que funcionou como uma espécie de reconhecimento formal por Cunhal ter apoiado a invasão da Checoslováquia – que em nada foi pacífica – pelas forças soviéticas.

Cunhal só regressou a Portugal cinco dias depois da revolução de 25 de Abril de 1974. Em 1989 Álvaro Cunhal foi à URSS para ser operado a um aneurisma da aorta, sendo recebido em Moscovo por Mikhail Gorbatchov, que o agraciou com a “Ordem de Lenine”. Em Portugal, foi ministro sem pasta nos I, II, III e IV governos provisórios e deputado à Assembleia da República entre 1975 e 1992. Morreu aos 92 anos, a 13 de Junho de 2005, em Lisboa, e ao seu funeral foram mais de 250 mil pessoas, segundo informações do PCP.

METODOLOGIA

O Jornal Económico (JE) selecionou as 25 personalidades mais relevantes para Portugal nos últimos 25 anos, referentes ao período balizado entre 1995 e 2020, destacando as que exerceram maior influência no desenvolvimento da sociedade civil, da economia nacional, no crescimento internacional dos nossos grupos empresariais, na forma como evoluíram a diáspora lusa e as comunidades de língua oficial portuguesa, no processo de captação de investidores estrangeiros e, em suma, na maneira como o país se afirmou no mundo. Esta lista foi publicada a 4 de setembro de 2020, antes do primeiro fim de semana do nono mês do ano. Retomando a iniciativa a partir do último fim de semana de setembro, mas agora alargada a 30 personalidades, o JE publicará, todos os sábados e domingos, textos sobre as 30 personalidades selecionadas, por ordem decrescente. Aos 25 nomes inicialmente publicados, o JE acrescenta agora os nomes de António Ramalho Eanes, António Guterres, Pedro Queiroz Pereira, Vasco de Mello e Rui Nabeiro.

Cumpre explicar ao leitor que a metodologia seguida foi orientada por critérios jornalísticos, sem privilegiar as personalidades eminentemente políticas, que tendem a ter um destaque mediático maior do que o que é dado aos empresários, aos economistas, aos gestores e aos juristas, mas também sem ignorar os políticos que foram determinantes na sociedade durante o último quarto de século. Também não foram ignoradas as personalidades que, tendo falecido pouco antes de 1995, não deixaram de ter impacto económico, social, cultural, científico e político até 2020, como é o caso de José Azeredo Perdigão e da obra que construiu durante toda a sua longa vida – a Fundação Calouste Gulbenkian.

O ranking é iniciado pelos líderes históricos de cinco grupos empresariais portugueses, com Alexandre Soares dos Santos em primeiro lugar, distinguido como grande empregador na área da distribuição alimentar, e por ter fomentado a internacionalização do seu grupo em geografias como a Polónia – com a marca “Biedronka” (Joaninha) – e a Colômbia. Assegurou igualmente a passagem de testemunho ao seu filho Pedro Soares dos Santos. O Grupo Jerónimo Martins tem vindo a incentivar a utilização de recursos marinhos, pelo aumento da produção portuguesa de aquacultura no mar da Madeira – apesar de vários economistas terem destacado a importância da plataforma marítima portuguesa como fonte de riqueza, poucos empresários têm apoiado projetos nesta área, sendo o grupo liderado por Soares dos Santos um dos casos que não descurou o potencial do mar português.

Segue-se em 2º lugar Américo Amorim, que além do seu império da cortiça – o único sector em que Portugal conquistou a liderança mundial –, se destacou no mundo da energia e nos petróleos, assegurando a continuidade do controlo familiar dos seus negócios através das suas filhas. Belmiro de Azevedo aparece em terceiro lugar, consolidando a atividade da sua Sonae, bem como a participação no competitivo mundo das telecomunicações e o desenvolvimento do seu grupo de distribuição alimentar, com testemunho passado à sua filha, Cláudia Azevedo.

Em quatro lugar está António Champalimaud e a obra que o “capitão da indústria” deixou, na consolidação bancária, enquanto acionista do Grupo Santander – um dos maiores da Europa –, mas também ao nível da investigação desenvolvida na área da saúde, na Fundação Champalimaud. Em quinto lugar surge Francisco Pinto Balsemão que centrou a sua vida empresarial na construção de um grupo de comunicação com plataformas integradas e posições sólidas na liderança da imprensa e da televisão durante o último quarto de século.

Os políticos aparecem entre as individualidades seguintes, liderados por Mário Soares (que surge em 6º lugar). António Ramalho Eanes está em 7º lugar, António Guterres em 8º, seguindo-se Marcelo Rebelo de Sousa (9º), António Costa (10º), José Eduardo dos Santos (11º) – pelo peso que os elementos da sua família tiveram na economia portuguesa, sobretudo a sua filha Isabel dos Santos, e pelos investimentos concretizados em Portugal pelo conjunto de políticos e empresários angolanos próximos ao ex-presidente de Angola, atualmente questionados, na sua maioria, pela justiça angolana – e Aníbal Cavaco Silva (12º). Jorge Sampaio surge em 13º, seguido por Mário Centeno (14º), José de Azeredo Perdigão (15º), António Luciano de Sousa Franco (16º), Pedro Passos Coelho (17º), Álvaro Cunhal (18º), Ernesto Melo Antunes (19º), Luís Mira Amaral (20º), Pedro Queiroz Pereira (21º), Vasco de Mello (22º), Ricardo Salgado (23º), José Socrates (24º), Ernâni Rodrigues Lopes (25º), Francisco Murteira Nabo (26º), Rui Nabeiro (27º), Leonor Beleza (28º), António Arnaut (29º) e Joana de Barros Baptista (30º).

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