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Personalidades JE: José Sócrates – O maior processo do século

José Sócrates protagoniza o maior processo que leva a Tribunal um antigo primeiro ministro de Portugal. Dificilmente haverá um julgamento mais mediático envolvendo um líder político português. Seja qual for a sentença, será sempre surpreendente.
24 Outubro 2020, 14h00

O Jornal Económico escolheu 30 personalidades dos últimos 25 anos que marcaram, pela positiva e pela negativa, a atual sociedade portuguesa: políticos, empresários, gestores, economistas e personalidades da sociedade civil. A metodologia usada para compilar as Personalidades JE está explicada no final do texto.

Nunca um processo português motivou tanta ansiedade, em relação à sentença que venha a ser proferida, como acontece no caso que levou a tribunal o antigo primeiro ministro, José Sócrates – que sempre se afirmou vítima de perseguição, rodeado por acusações que diz não terem fundamento. A questão é complexa e qualquer que venha a ser a sentença, ninguém duvida que será sempre surpreendente.

A biografia de José Sócrates (Porto, 1957) que continua disponível online, no site do Parlamento, ainda referente à fase em que integrou as listas do PS – partido que depois veio a abandonar –, apresenta nas suas habilitações literárias a licenciatura em Engenharia Civil e a profissão de engenheiro civil. Na altura, ninguém imaginaria a tinta que iria correr nos jornais depois deste registo biográfico ter sido oficialmente divulgado pela Assembleia da República. No mesmo sentido, Portugal deu muitas voltas, antes, durante e depois de José Sócrates ter sido primeiro-ministro.

Da fase em que liderou o Executivo, ficam para a história os projetos da rede ferroviária de Alta Velocidade, do Novo Aeroporto Internacional de Lisboa, ou da sofisticada rede do “Portugal Logístico” que pretendia criar uma rede nacional de onze Plataformas Logísticas, entre as quais se destacava o gigantesco projeto do Poceirão. Todos estes investimentos ficavam sob a tutela do então ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações, Mário Lino. Há ainda a área da nova mobilidade não poluente, que promoveu em Portugal a utilização dos carros elétricos e a criação de uma rede de postos de carregamento de baterias de automóveis com cobertura nacional.

Hecatombe das contas públicas

Tudo se complicou a partir da fase final do Governo de José Sócrates, que foi particularmente atribulada – marcada por uma viagem de Estado à península da Arábia, com passagem pelo Adu Dhabi e pelo Qatar, onde o então ministro das Finanças, Teixeira dos Santos, juntamente com o primeiro ministro, tentaram “distrair” a comunicação social que acompanhou esta visita oficial, garantindo aos jornalistas que o Governo não tinha ido vender mais dívida portuguesa aos investidores institucionais árabes. O episódio seguinte do Governo Sócrates foi a hecatombe das contas públicas e o pedido de auxílio internacional, a que se sucedeu a entrada da Troika em Portugal.

A partir daí, nunca um antigo primeiro ministro de Portugal teve um escrutínio tão intenso na comunicação social. Rádios, jornais, revistas e televisões cobriram todos os ângulos da vida de José Sócrates, fora de Portugal, em Paris, na sua detenção à entrada no país, sobre todo o processo em que é arguido, nas informações sobre escutas, relativamente à sua prisão em Évora e a tudo o mais que se foi sucedendo. Decorridos praticamente cinco anos a contar da data em que José Sócrates foi detido, a fase de instrução do processo “Operação Marquês” foi iniciada no Tribunal Central de Instrução Criminal, em Lisboa, pelo juiz Ivo Rosa, em janeiro de 2019.

O respetivo processo contou com mais 53 mil páginas de papel, numa investigação que ultrapassou as duas centenas de buscas, com 2600 escutas autorizadas, foram ouvidas para cima de duas centenas de testemunhas e ainda incluiu a análise de 500 contas bancárias dentro e fora do país, além das nove cartas rogatórias que foram enviadas ao estrangeiro, desde Angola à Suíça. José Sócrates sempre se afirmou inocente e vítima de múltiplas perseguições. Entre os 28 arguidos iniciais figuraram os nomes de Carlos Santos Silva, Henrique Granadeiro, Zeinal Bava, Armando Vara, Joaquim Barroca e Hélder Bataglia, bem como as empresas do Grupo Lena e de Vale do Lobo Resorts.

Farinho e Mão de Ferro

Pelo meio surgiram outras questões “paralelas” que despertaram o interesse mediático, como a informação divulgada por quase todos os jornais sobre o facto do Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences Po), da Universidade de Sorbonne, ponderar a anulação do mestrado de José Sócrates. Tal como as situações que envolveram o alegado autor da tese de mestrado de José Sócrates, o professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Domingos Farinho, quando admitiu que nunca tinha trabalhado para o empresário Rui Mão de Ferro (administrador de várias empresas do amigo de José Sócrates, Carlos Santos Silva), embora tenha mantido com este empresário uma “consultadoria jurídica”.

Também originaram muitas notícias as declarações de José Sócrates sobre a herança da mãe, Maria Adelaide Carvalho Monteiro, e o acesso ao cofre onde supostamente a mãe guardava o dito dinheiro, apesar de Carlos Santos Silva ter contrariado, de certa forma, a versão da riqueza da mãe de José Sócrates. Ou ainda a resposta do juiz Ivo Rosa a José Sócrates, quando lhe disse que “o cofre não produz dinheiro”. Enquanto isso, a 4 de março de 2020, José Sócrates argumentava que a acusação do Ministério Público era um “embuste”. No dia seguinte, 5 de março, no final do debate instrutório, o Ministério Público pediu ao juiz Ivo Rosa, que levasse a julgamento todos os 28 arguidos do processo “Operação Marquês” – 19 pessoas e nove empresas. Ainda em março, José Sócrates regressou ao mercado de trabalho, para desempenhar funções de consultor no sector privado, perdendo o direito à subvenção vitalícia que solicitou em 2016 pelos seus 18 anos de atividade política e de ex-governante, atendendo a que com o novo trabalho de consultor passou a ganhar um salário mensal superior.

Aguarda julgamento desde 2015

José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa, por suspeita dos crimes de corrupção, fraude fiscal qualificada e branqueamento de capitais, aguarda julgamento em liberdade, com termo de identidade e residência desde 16 de outubro de 2015. Já esteve em prisão domiciliária entre setembro e outubro de 2015 e, antes disso, cumpriu prisão preventiva de novembro de 2014 a setembro de 2015. Além dos problemas pendentes em tribunal, o antigo primeiro-ministro de Portugal – de 2005 a 2011 – e organizador do campeonato de futebol Euro 2004 ainda hoje continua a ser recordado pela tensão que criou com a Ordem dos Engenheiros por causa do seu título académico, atendendo que esta Ordem não autorizou que José Sócrates utilize o título correspondente à sua licenciatura em Engenharia Civil pela Universidade Independente.

Filho do arquiteto Fernando Pinto de Sousa viveu a infância e adolescência na Covilhã com o seu pai. Estudou na Escola Secundária Frei Heitor Pinto na Covilhã e em 1975 inscreveu-se no Instituto Superior de Engenharia de Coimbra (ISEC) e aí obteve o grau de bacharel em Engenharia Civil, correspondente a engenheiro técnico civil. Iniciou a sua carreira política como membro-fundador da Juventude Social Democrata (JSD) na Covilhã, mas, em 1981, mudou a filiação política para o Partido Socialista (PS).

De 1987 a 1993 esteve matriculado na Universidade Lusíada de Lisboa, em Direito, sem ter concluído a respetiva licenciatura. No ano letivo de 1994/95 matriculou-se no Instituto Superior de Engenharia de Lisboa (ISEL), onde fez o primeiro ano do curso de Engenharia Civil – que confere o grau de licenciado. No entanto, preferiu inscrever-se na Universidade Independente para concluir a licenciatura em Engenharia Civil, o que terá ocorrido em 1996.

Depois disso, frequentou o mestrado no ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa, obtendo aí, em 2005, o diploma de MBA, referente à parte letiva do mestrado que frequentou – terá realizado o primeiro semestre de um programa de graduação de dois anos de Mestrado do ISCTE, que supostamente não terminou. Em 2007, já primeiro-ministro, foi-lhe questionada a utilização do título de engenheiro, relativa à sua licenciatura em Engenharia Civil pela Universidade Independente.

Embora José Sócrates não tenha cometido uma ilegalidade, a Universidade Independente fora encerrada em 2007 por falta de qualidade pedagógica e má conduta ética na sequência de um processo movido pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior. Esta situação levou o Ministério Público, em 2015, a confirmar a nulidade do seu percurso académico, enquanto a Ordem dos Engenheiros, em 2017, esclareceu que José Sócrates nunca esteve inscrito na Ordem dos Engenheiros, não sendo portador do título profissional de engenheiro.

Antigo secretário-geral do Partido Socialista – cargo que desempenhou de setembro de 2004 a julho de 2011 –, ex-secretário de estado-adjunto do Ministério do Ambiente e ministro do Ambiente e do Ordenamento do Território no Governo de António Guterres, José Sócrates deixou para a história, enquanto primeiro ministro, um desempenho orçamental que penalizou o país.

Défice de má memória

Após a revisão metodológica do sistema das contas nacionais, o Governo de José Sócrates apresentou em 2010 um dos défices mais elevados nas contas públicas, com um saldo negativo de 11,2% do PIB. Segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), pela revisão dos défices num período de quatro anos – devida às novas regras da contabilidade europeia – o défice de 2010 foi revisto ao nível mais alto que até então tinha sido registado nas contas públicas, com um saldo negativo de 11,2% do PIB.

Devido ao facto das contas nacionais terem passado do antigo sistema SEC95 para o mais recente SEC2010, com várias alterações metodológicas, diversas entidades classificadas em outros sectores institucionais foram “reclassificadas no sector das Administrações Públicas”, explicou na altura o INE, esclarecendo que também se efetuaram alterações no registo de juros de operações swap, aplicando novas regras na contabilização das transferências de fundos de pensões, que deixaram de contar como receitas extraordinárias no SEC2010, passando a ser consideradas operações financeiras com efeitos neutros.

Ora, em 2010 o Governo de José Sócrates integrou no Estado o fundo de pensões da Portugal Telecom, o que contribuiu para que o défice desse ano fosse revisto em alta, aumentando dos anteriores 9,8% do PIB para 11,2%. Salvaguardada esta alteração contabilística, mesmo assim constatou-se que a crise orçamental no Governo de José Socrates se tinha tornado insustentável, levando o Parlamento a apresentar um “cartão vermelho” ao executivo.

Assim, na noite de 23 de Março de 2011, os deputados rejeitaram o IV Programa de Estabilidade e Crescimento (PEC) proposto por José Sócrates para combater a recessão económica. O passo seguinte foi o pedido de resgate ao Fundo Europeu de Estabilização Financeira (FEEF) – repetindo-se em Portugal o que já tinha acontecido na Irlanda e na Grécia. Na manhã de 23 de Março, José Sócrates apresentou o seu pedido de demissão ao Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, que marcou eleições legislativas para 5 de junho de 2011, em que José Sócrates foi derrotado por Pedro Passos Coelho, que tomou posse a 21 de Junho de 2011.

Depois de ter pedido a demissão de primeiro-ministro, José Sócrates foi estudar Teoria Política para Paris onde terá obtido o grau de Mestre com defesa de uma tese sobre a “Tortura em Democracia”, posteriormente publicada no livro “A Confiança no Mundo: Sobre a Tortura em Democracia”, apresentado no Museu da Eletricidade em Outubro de 2013, e que veio a ter cinco edições.

O autor da tese

No entanto, escutas telefónicas efetuadas a José Sócrates no âmbito da Operação Marquês permitiram saber que o livro “A Confiança no Mundo: Sobre a Tortura em Democracia” teria um autor diferente. O professor universitário Domingos Farinho admitiu ao Ministério Público ter recebido dinheiro pela ajuda na preparação da tese do mestrado parisiense de José Sócrates, prestada entre 2012 e 2013.

A 21 de novembro de 2014, José Sócrates foi detido por agentes da Autoridade Tributária e Aduaneira à chegada ao Aeroporto da Portela, vindo de Paris, indiciado, no âmbito da Operação Marquês, por crimes de fraude fiscal, branqueamento de capitais, corrupção e tráfico de influências. Atendendo à gravidade das acusações de que foi alvo, passou a noite no comando metropolitano da PSP em Moscavide, onde aguardou pelo primeiro interrogatório judicial.

Concluído o interrogatório pelo juiz Carlos Alexandre, foi colocado em prisão preventiva no Estabelecimento Prisional de Évora, uma instalação de alta segurança que tinha sido inaugurada durante o seu mandato, passando à história desta pequena unidade prisional de Évora como ex-primeiro ministro prisioneiro da cela 44. Em junho de 2015, José Sócrates reivindicou a condição de preso político e atribuiu a sua prisão a uma tentativa de impedir a vitória do PS nas eleições legislativas seguintes. A 4 de Setembro foi-lhe alterada a medida de coação para prisão domiciliária com vigilância policial. A 16 de outubro de 2015, a medida de coação foi alterada para Termo de Identidade e Residência, com proibição de contactar os restantes arguidos do processo Operação Marquês e de sair do país sem autorização prévia. Em fevereiro de 2017, o Tribunal da Relação de Lisboa indeferiu um recurso de José Sócrates contra os prazos do inquérito em que é arguido por suspeitas de corrupção. Em maio de 2018, José Sócrates abandonou o PS.

METODOLOGIA

O Jornal Económico (JE) selecionou as 25 personalidades mais relevantes para Portugal nos últimos 25 anos, referentes ao período balizado entre 1995 e 2020, destacando as que exerceram maior influência no desenvolvimento da sociedade civil, da economia nacional, no crescimento internacional dos nossos grupos empresariais, na forma como evoluíram a diáspora lusa e as comunidades de língua oficial portuguesa, no processo de captação de investidores estrangeiros e, em suma, na maneira como o país se afirmou no mundo. Esta lista foi publicada a 4 de setembro de 2020, antes do primeiro fim de semana do nono mês do ano. Retomando a iniciativa a partir do último fim de semana de setembro, mas agora alargada a 30 personalidades, o JE publicará, todos os sábados e domingos, textos sobre as 30 personalidades selecionadas, por ordem decrescente. Aos 25 nomes inicialmente publicados, o JE acrescenta agora os nomes de António Ramalho Eanes, António Guterres, Pedro Queiroz Pereira, Vasco de Mello e Rui Nabeiro.

Cumpre explicar ao leitor que a metodologia seguida foi orientada por critérios jornalísticos, sem privilegiar as personalidades eminentemente políticas, que tendem a ter um destaque mediático maior do que o que é dado aos empresários, aos economistas, aos gestores e aos juristas, mas também sem ignorar os políticos que foram determinantes na sociedade durante o último quarto de século. Também não foram ignoradas as personalidades que, tendo falecido pouco antes de 1995, não deixaram de ter impacto económico, social, cultural, científico e político até 2020, como é o caso de José Azeredo Perdigão e da obra que construiu durante toda a sua longa vida – a Fundação Calouste Gulbenkian.

O ranking é iniciado pelos líderes históricos de cinco grupos empresariais portugueses, com Alexandre Soares dos Santos em primeiro lugar, distinguido como grande empregador na área da distribuição alimentar, e por ter fomentado a internacionalização do seu grupo em geografias como a Polónia – com a marca “Biedronka” (Joaninha) – e a Colômbia. Assegurou igualmente a passagem de testemunho ao seu filho Pedro Soares dos Santos. O Grupo Jerónimo Martins tem vindo a incentivar a utilização de recursos marinhos, pelo aumento da produção portuguesa de aquacultura no mar da Madeira – apesar de vários economistas terem destacado a importância da plataforma marítima portuguesa como fonte de riqueza, poucos empresários têm apoiado projetos nesta área, sendo o grupo liderado por Soares dos Santos um dos casos que não descurou o potencial do mar português.

Segue-se em 2º lugar Américo Amorim, que além do seu império da cortiça – o único sector em que Portugal conquistou a liderança mundial –, se destacou no mundo da energia e nos petróleos, assegurando a continuidade do controlo familiar dos seus negócios através das suas filhas. Belmiro de Azevedo aparece em terceiro lugar, consolidando a atividade da sua Sonae, bem como a participação no competitivo mundo das telecomunicações e o desenvolvimento do seu grupo de distribuição alimentar, com testemunho passado à sua filha, Cláudia Azevedo.

Em quatro lugar está António Champalimaud e a obra que o “capitão da indústria” deixou, na consolidação bancária, enquanto acionista do Grupo Santander – um dos maiores da Europa –, mas também ao nível da investigação desenvolvida na área da saúde, na Fundação Champalimaud. Em quinto lugar surge Francisco Pinto Balsemão que centrou a sua vida empresarial na construção de um grupo de comunicação com plataformas integradas e posições sólidas na liderança da imprensa e da televisão durante o último quarto de século.

Os políticos aparecem entre as individualidades seguintes, liderados por Mário Soares (que surge em 6º lugar). António Ramalho Eanes está em 7º lugar, António Guterres em 8º, seguindo-se Marcelo Rebelo de Sousa (9º), António Costa (10º), José Eduardo dos Santos (11º) – pelo peso que os elementos da sua família tiveram na economia portuguesa, sobretudo a sua filha Isabel dos Santos, e pelos investimentos concretizados em Portugal pelo conjunto de políticos e empresários angolanos próximos ao ex-presidente de Angola, atualmente questionados, na sua maioria, pela justiça angolana – e Aníbal Cavaco Silva (12º). Jorge Sampaio surge em 13º, seguido por Mário Centeno (14º), José de Azeredo Perdigão (15º), António Luciano de Sousa Franco (16º), Pedro Passos Coelho (17º), Álvaro Cunhal (18º), Ernesto Melo Antunes (19º), Luís Mira Amaral (20º), Pedro Queiroz Pereira (21º), Vasco de Mello (22º), Ricardo Salgado (23º), José Socrates (24º), Ernâni Rodrigues Lopes (25º), Francisco Murteira Nabo (26º), Rui Nabeiro (27º), Leonor Beleza (28º), António Arnaut (29º) e Joana de Barros Baptista (30º).

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