A globalização trouxe certamente muitos benefícios à sociedade, contudo não é desprovida de contra-indicações. Uma delas é o ritmo muito mais elevado com que vivemos o dia-a-dia, seja no trabalho ou na nossa vida pessoal, mas principalmente ao nível do pensamento. Quantas vezes nos últimos anos tirou tempo para elaborar um pensamento crítico sobre os princípios que governam a sociedade?

O “novo normal” não é o debate dos princípios, mas a discussão descontrolada da espuma dos temas, saltitando rapidamente de um para o outro numa avidez beligerante da nossa sustentabilidade civilizacional, naquilo que correntemente se chama de “ciclos de notícias”.

Analisemos o caso do momento, a “crise energética”. Anda boa parte do país atrás dos spins de uns e de outros, no ataque pessoal ou a discutir temas sem qualquer informação, enquanto que um princípio bem mais importante passa completamente ao lado do debate. A verdade é que este fait-divers de Verão veio demonstrar, inequivocamente, que a energia é um activo crítico que o Estado preserva a quase todo o custo, o que não é de admirar tendo em conta que a maior parte das guerras recentes por esse mundo fora foram espoletadas para se ter acesso a reservas de petróleo.

A questão de princípio que coloco é a seguinte, sendo a energia um activo essencial, para o qual, na sua distribuição, se utilizam os mais intrusivos instrumentos de uma Democracia, como a requisição civil, ou a utilização de forças de segurança e militares, será que a energia é tratada fiscalmente como se de um bem essencial se tratasse?

É a partir daqui que o novelo da manipulação e usurpação começa a desenrolar-se. O ser humano sobrevive cerca de três a quatro dias sem ingerir água, sendo por isso condição sine qua non à nossa existência e a razão que levou as Nações Unidas a declarar o direito à Água como um Direito Humano em 2010, pela resolução 64/292, na qual se inscreve também que a mesma é essencial à realização de todos os Direitos Humanos.

Contudo, o Estado acha por bem cobrar uma taxa de IVA de 6% no consumo de água, absolutamente fundamental, isentando de imposto o saneamento e os resíduos sólidos, importantes sem dúvida, mas não fulcrais. Na alimentação o cenário é semelhante. Produtos essenciais à existência humana taxados com IVA a 6%, onde impera apenas a intenção do maior saque fiscal possível, porque princípios nem vê-los.

De volta à questão energética, é hoje consensual que a electricidade, o gás natural e os combustíveis são produtos indispensáveis à condição humana. Se assim não fosse estaríamos a assumir um regresso à idade da pedra.

Ora, o mesmo Estado que faz tudo para manter o fluxo dos combustíveis, assumindo o seu papel fundamental na vida da sociedade, é o mesmo Estado que sem qualquer pingo de vergonha extorque o cidadão aplicando a estes produtos essenciais uma carga de impostos entre os 60% e os 70%, um nível próximo da fiscalidade do tabaco.

É também o mesmo Estado que tem em processo de aprovação a cobrança da taxa de subsolo do gás aos consumidores, quando tinha revertido essa possibilidade em 2017. Não obstante esta incongruência entre necessidade e fiscalidade, não vislumbro qualquer debate sobre o tema, estando antes a conversa focada em assuntos menores, adormecendo assim os sentidos do cidadão pagador com conversas de café.

“Muitas vezes desfrutamos do prazer da opinião, sem o desconforto do pensamento”, disse John F. Kennedy. A ausência de pensamento crítico, de luta por princípios delapida fatalmente os pilares da nossa estrutura social, deixando-nos à mercê das grilhetas de um Estado Fiscal que existe para sustentar os interesses de uns à conta de muitos, atropelando para isso as mais elementares regras de humanidade.

Enquanto cidadãos temos a obrigação de reflectir, debater e lutar pelo que achamos correcto e de não nos resignarmos só porque alguém fez uma lei à medida dos seus interesses.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.