A menos que pertença ao grupo dos “privilegiados”, o caro(a) leitor(a) é muito provavelmente mais um da esmagadora maioria dos portugueses que trabalham para aquecer. O que quero dizer com isto? Significa que por muito que trabalhe no final do mês o pouco que recebe, ou pior, o pouco que leva para casa, ou ainda pior, o pouco que fica disponível depois de todas as taxas e taxinhas que o Estado lhe impõe, não dá para mandar cantar um cego, como se diz na gíria popular.

Cerca de 3,9 milhões de famílias portuguesas, representando cerca de 84% dos contribuintes singulares (IRS), têm um rendimento colectável inferior a 20.000 euros por ano, dos quais cerca de 66% auferem menos de 10.000 euros por ano. Isto é trabalhar para aquecer!

Até porque, na zona euro, só ficamos atrás da Grécia no número de horas de trabalho por semana no emprego principal. No emprego total, em Portugal, trabalha-se, em média, mais 479 horas por ano do que na Alemanha, ou cerca de 20 dias de 24 horas. Mas, “trabalhando” tanto, será que ganhamos pelo menos o mesmo? Não, na realidade ganhamos menos de metade: 16.574 euros por ano, ou cerca de 44% dos 38.302 euros por ano de rendimento médio na Alemanha (dados da OCDE).

Mas será que estamos a melhorar? Não, não estamos. Entre 2000 e 2016, na zona euro, os trabalhadores portugueses foram os que mais viram aumentar o número de horas semanais no emprego principal, +0,6%. Ao mesmo tempo, foram logo a seguir à Grécia os que menos viram aumentar os rendimentos anuais, mais 3.949 euros, embora com um senão – em 2010, o rendimento médio anual era superior ao de 2016, ou seja, foram seis anos perdidos.

Ora, se fomos dos que ganhámos menos, será que os impostos também subiram menos e tivemos mais rendimento disponível? Não e não! De 2000 a 2015, Portugal foi o país na zona Euro que mais aumentou a carga fiscal em percentagem do PIB, +3,44%, quando a média na OCDE foi de apenas +0,31%. No rendimento real disponível, de 2002 a 2014, as famílias portuguesas perderam 3,6% do seu rendimento em agregado. Pior só Itália com -7%, com a diferença que os italianos levam cerca de 80% mais de vencimento anual para casa.

Uma última tentativa. Andámos a trabalhar, mas agora temos menos dívida? Todos sabem que não. Portugal, que teve o maior aumento de dívida versus PIB de 2000 até 2017, tem hoje a terceira maior dívida pública da zona euro versus PIB, com 125,7% (Maastricht), isto é, muito acima da média, 86,9%.

Agora, já em desespero de causa. O desemprego está a cair, portanto a situação está a melhorar. Não. Desde o início de 2014 até ao final do primeiro trimestre de 2017, a média de novos contratos de trabalho iniciados com vencimento igual ao Rendimento Mensal Mínimo Garantido aumentou de 23,1% para os 40,1%, ou seja, é emprego precário.

Resumindo, estamos a trabalhar mais por semana e a receber menos do que em 2010, o vencimento médio nacional é o quarto pior da zona euro e corresponde apenas a 44% do vencimento na Alemanha. Fomos os que mais aumentámos os impostos e fomos os que mais aumentámos a dívida. O rendimento disponível é hoje menor que há 12 anos e o novo trabalho é de rendimentos muito baixos.

Então quem se safa? Quem tem mais-valias ou vantagens. Há dois tipos de “privilegiados”: os poucos que, por mérito próprio, conseguiram um emprego bem remunerado nas poucas empresas que produzem maior valor acrescentado, e os fura-vidas.  Quem são os fura-vidas? Aqueles que produziram o “belo” trabalho que acabei de enunciar e que são pagos muito acima dos valores médios nacionais, ou mesmo principescamente.

Um deputado nacional ganha 50.000 euros por ano, ou cerca de três vezes o vencimento médio nacional. É certo que é menor que os 110.000 euros que ganha um deputado alemão, mas é muito superior aos 35.000 euros que um deputado espanhol ganha. Sendo que ambos, alemães e espanhóis, “produziram” muito mais que os portugueses, e comparando os vencimentos dos deputados com os vencimentos médios dos cidadãos, os deputados de São Bento recebem em linha com os alemães.

Já os deputados europeus é outra história, bem mais recheada. Esses fura-vidas VIP auferem cerca de 215.000 euros por ano, ou mais de 1.000% o vencimento médio nacional. Portanto caro leitor, regresso à pergunta inicial: que tal é trabalhar para aquecer? Para mais, sabendo que isso acontece porque uns privilegiados fura-vidas destroem o potencial nacional através da corrupção e da impunidade instalada? Vai continuar a sustentar este sistema podre? Ou vai tirar-lhes o tapete participando activa e interessadamente na vida política, fora do cancro dos aparelhos partidários? A escolha é sua, as consequências também.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.