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Ramalho Eanes ataca “febre ideológica” nos serviços públicos

Antigo Presidente da República apontou falhas dos partidos políticos e da sociedade civil ao falar sobre “Portugal: As Crises e o Futuro” na SEDES.
  • nor
13 Julho 2019, 18h00

O general António Ramalho Eanes, primeiro Presidente da República eleito depois do 25 de abril de 1974, fez uma referência implícita ao debate em torno da Lei de Bases da Saúde, criticando a “febre ideológica” que condiciona as posições dos partidos políticos quanto à prestação de serviços públicos, durante a conferência “Portugal: As Crises e o Futuro”, que realizou nesta segunda-feira na SEDES – Associação para o Desenvolvimento Económico e Social.

“A febre ideológica parece esquecer-se de que cabe ao Estado o dever de definir o interesse geral e suas regras, o que não quer dizer que o Estado, fixando as regras do jogo, deva ele próprio fornecer os serviços. Aliás, os serviços prestados pelo Estado e por outrem que não o Estado nessas áreas permite, em minha opinião, uma comparação em qualidade e controlo de custos”, defendeu o atual conselheiro de Estado, salientando que assim sucede nos setores da saúde e dos transportes ferroviários.

Numa “radiografia do estado presente da nossa democracia” na qual não poupou críticas aos partidos que “funcionam como corporações de interesses” – sendo a distribuição de lugares na administração da Caixa Geral de Depósitos apontada como “exemplo paradigmático de colonização partidária” – e à “sociedade civil amorfa”, o militar que foi Chefe de Estado entre 1976 e 1986 disse que tal conjugação “abre portas à demagogia e ao engano, à corrupção, ao justicialismo e ao populismo”. Em sua opinião, é na substituição dos critérios de saber, competência e mérito pela “fidelidade partidária, solidariedade e interesses vários e malsãos” que “em muito radica a epidemia de corrupção que grassa na sociedade portuguesa, que debilita a confiança social e que contribui para a sua degradação”.

Eanes também não se esqueceu dos limites impostos à regulação, função tradicional do Estado progressivamente diminuída pela integração europeia. “Fazer promessas económicas, como acontece entre nós, sobretudo em períodos eleitorais, é já um ato grave e quase enganoso. Na verdade, juridica e institucionalmente, não há já meios para as cumprir”, acrescentou. Isto porque a política monetária “está nas mãos do Banco Central Europeu, uma autoridade sem contrapoder real”, e o poder fiscal que resta aos estados nacionais “resta apenas teoricamente, dada a liberdade de movimentos de capitais, de empresas a deslocalizaram-se, com as consequências negativas que todos conhecemos”.

Reconhecendo que não é fácil inverter a situação, o antigo Presidente da República apresentou propostas, incluindo a definição de uma política migratória “que procurasse, através de migrantes qualificados, de culturas com afinidade com a cultura portuguesa, dar resposta às exigências requeridas pelo universo nacional empresarial”, a promoção de um esforço de investimento público em áreas estratégicas – desde os caminhos-de-ferro e portos até à educação e formação profissional – ou, entre outras, “tentar junto da UniãoEuropeia a reabilitação da chamada ‘regra de ouro de Delors’, que consistia em retirar do défice público os investimentos produtivos”.

Atenção à China
Olhando para fora de Portugal, o conselheiro de Estado recuperou aquilo que Napoleão disse da China há dois séculos, avisando que o mundo deveria “ter cuidado quando acordasse”.

Referindo-se a declarações do presidente chinês Xi Jingping, que terá dito que “o leão tinha acordado, mas era pacífico, simpático e elegante”, Eanes deixou um alerta: “Não conheço leões que sejam pacíficos e simpáticos, embora possam ser elegantes”.

Profundo conhecedor da mentalidade chinesa, pelo papel que teve no restabelecimento de relações diplomáticas entre Portugal e a República Popular da China e na negociação da transferência de soberania de Macau – décadas depois de, no início da carreira militar, ter feito uma comissão no território -, realçou que “aquele regime continua a ser um regime de força”. Algo patente na reação aos protestos em Hong Kong e na intervenção musculada do regime sobre as minorias étnicas e religiosas existentes no seu vasto território.

O antigo Chefe de Estado acredita que nada terá mudado apesar do projeto de transformação que lhe foi apresentado por Deng Xiaoping quando lideravam as negociações luso-chinesas. “A China voltou à soberba que durante muito tempo lhe foi natural, pois foram eles os grandes descobridores de todas as coisas importantes”, disse Eanes, alertando que a convicção chinesa quanto à sua superioridade “pode ser preocupante”.

Numa altura em que Portugal é um dos países ocidentais cuja economia ficou marcada pelos avultados investimentos chineses na banca, seguros e energia elétrica, Eanes deixou um alerta adicional. “Sabemos por experiência que não é fácil encontrar um conflito com a China, pois eles procuram o diálogo em vez do conflito, mas embora o Estado possa entrar em conflito com uma empresa, dificilmente pode entrar em conflito com uma empresa que tenha por detrás um Estado daquela dimensão”.

Artigo publicado na edição nº 1995, de 28 de junho, do Jornal Económico

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