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Resistência: Os 347 portugueses que foram esquecidos na luta contra os nazis

José Manuel Barata-Feyo revela as histórias desconhecidas de centenas de portugueses que lutaram contra os nazis, em “A Sombra dos Heróis”. O autor do livro, feito com base em material inédito, espera que Portugal preste devido reconhecimento a quem não aparece nos livros de História.
19 Maio 2019, 14h30

São 347 os nomes dos resistentes portugueses que combateram a ocupação nazi em França, reunidos no mais recente livro do jornalista José Manuel Barata-Feyo (“A Sombra dos Heróis”). Homens, mulheres, mais velhos e mais jovens. Podiam ter-se acomodado à neutralidade portuguesa na Segunda Guerra Mundial, mas decidiram lançar-se na luta pela liberdade, onde o combate nem sempre foi feito com armas iguais. Ignorados como um todo em França, e até agora desconhecidos em Portugal, Barata-Feyo espera que a Presidência da República venha agora reconhecer estes resistentes como heróis nacionais.

“Eram pessoas extremamente simples no plano cultural. Muitos deles nem sabiam ler nem escrever”, conta ao Jornal Económico José Manuel Barata-Feyo. “Portugal era um país neutro e a guerra não lhes dizia respeito. António de Oliveira Salazar [chefe de Estado na altura] e a Virgem de Fátima tinham-nos livrado da guerra, mas ainda assim estes portugueses, com admirável coragem e amor à liberdade foram à luta. Foram uns verdadeiros heróis”, afirma o jornalista e escritor.

Em termos percentuais, a investigação de Barata-Feyo indica que houve mais portugueses do que franceses a lutarem pela libertação de França, sendo apenas superados pelos espanhóis e polacos na percentagem dos residentes no país que pertenceram à Resistência. “É preciso perceber que as principais potências europeias até à Segunda Guerra Mundial viam a guerra como sendo fraîche et joyeuse [fresca e alegre, em francês], mas quem já tinha feito a Guerra Civil de Espanha e a Primeira Guerra Mundial – como era o caso de vários resistentes portugueses – sabia perfeitamente que a guerra não tem nada de fraîche et joyeuse. Era exatamente o contrário. Estes resistentes portugueses sabiam ao que iam e mesmo assim foram”, explica Barata-Feyo ao Jornal Económico.

Entre os que aderiram à Resistência logo após a ocupação da França, em 1940, e os que se juntaram num esforço final para a libertação do país, contam-se histórias e motivações diferentes. Aos imigrantes que se oponham à ocupação nazi vieram juntar-se vários militantes comunistas, que até então tinham visto nos nazis um “aliado contra o imperialismo”, mas que mudaram de opinião após a violação do pacto germano-soviético, que levou a Alemanha a invadir a antiga URSS. Outros fizeram a resistência a título individual ou por mera solidariedade com o país para onde tinham emigrado ou fugido.

Apesar de até agora não terem sido reconhecidos pelo Estado português, alguns destes resistentes nacionais já foram distinguidos, individualmente, pela França. Há inclusive o caso de um português, Rogério Flores, que recebeu a condecoração máxima em França (Legião de Honra) e deu o nome à Escola Militar Inter-Armas; homenagem invulgar, especialmente, por ser prestada a um estrangeiro. Mas o reconhecimento do contributo da resistência foi, segundo Barata-Feyo, tardio. O general De Gaulle, que liderou as Forças Francesas Livres, quis enterrar a imagem da França colaboracionista, diminuindo a importância da Resistência, uma vez que era composta sobretudo por estrangeiros. O mesmo aconteceu com a omissão inicial de que Paris tinha sido libertada pela companhia “La Nueve”, formada quase exclusivamente por espanhóis.

“A França ainda hoje não tem uma ideia global sobre o que os portugueses fizeram na Resistência. Reconhecem méritos individuais e nunca o mérito da comunidade enquanto tal”, afirma Barata-Feyo. Em relação ao reconhecimento português, defende que este deve ser feito e, se até agora esta era uma história desconhecida, deixou agora de o ser. Contactada pelo Jornal Económico, a Presidência da República recusou-se a prestar qualquer comentário, por desconhecimento do conteúdo do livro.

Grandes amigos da França

Entre as centenas de histórias encontra-se a de Ermelinda dos Santos Viana. Nascida no Porto, partiu para França com apenas sete anos. Durante a ocupação alemã trabalhava como secretária estenodatilógrafa da direção de uma fábrica da Peugeot, em Sochaux, perto da fronteira com a Suíça. Tinha acesso a todos os planos secretos relacionados com a produção militar da fábrica, que fora ocupada pelas forças alemãs, e é a partir daí que começa a enviar informações confidenciais ao irmão, Emílio, que fazia parte da Resistência. Emílio atravessava a fronteira para a Suíça e as informações eram encaminhadas para os Aliados, através dos serviços secretos britânicos em Berna.

“A história dela, se fosse contada em romance, as pessoas iam pensar que o romancista tinha uma imaginação do arco-da-velha. Ultrapassa a ficção. É uma espécie de Mata Hari, agente secreta”, afirma Barata-Feyo. Ermelinda acaba por ser presa, depois de os nazis apanharem o irmão na fronteira. É levada para uma prisão na Alemanha e consegue fugir durante um bombardeamento, ao qual sobrevive ‘por uma unha negra’. No final da guerra, é-lhe entregue o duplo estatuto de membro da Résistance Intérieure Française (RIF) e de Deportée Internée Résistante (DIR), mas a Comissão Nacional da Resistência Interior Francesa vem mais tarde retirar e anular os certificados que lhe tinham sido atribuídos, sob a tese de que era afinal uma espia alemã. Emerlinda inicia uma nova guerra. Desta vez uma guerra pessoal, pelo reconhecimento das suas razões junto das altas instâncias. Cinco anos mais tarde, é-lhe atestada a honra pelo então ministro dos Antigos Combatentes e Vítimas da Guerra e o próprio general De Gaulle escreve-lhe uma carta de reconhecimento e gratidão pelos serviços prestados.

“Era uma mulher de armas terrível e nunca mais voltou a Portugal”, afirma Barata-Feyo. O autor considera que Ermelinda “merecia uma verdadeira homenagem na terra dela [no Porto]” e diz que já apresentou a sugestão junto do presidente da Câmara do Porto, Rui Moreira, que lhe havia sugerido a investigação. Contactada pelo JE, a autarquia não revela se irá ou não acatar a sugestão e lembra, nas palavras de Rui Moreira, que o livro tira da sombra heróis portugueses e “honra a nossa história”.

João Carlos da Silva é outros dos resistentes cuja história Barata-Feyo veio recuperar. O português, descrito como um dos mais valiosos agentes dos serviços secretos do general De Gaulle, nasceu em Setúbal e, assim que a Alemanha invadiu a França, juntou-se à resistência. Ficou responsável por espiar as instalações militares alemãs situadas ao longo da costa atlântica, no departamento de Landes, por áreas interditas a toda a gente, exceto aos militares alemães. No final da guerra, João foi elogiado pelos serviços de informação da França Livre, que a ele se referiram como um “grande amigo da França” e “um dos agentes mais ativos da rede”.

À história de João e de Ermelinda juntam-se muitas outras. A portuense que quase abriu um conflito entre Portugal e Inglaterra por ter sido vista a sair de um consulado alemão, o português nascido em Castelo Branco que morreu a cantar La Marseillaise (hino nacional francês) para o pelotão de fuzilamento, o artista que queria ir lutar para a Resistência mas acaba a fazer a guerra através da arte, sem disparar qualquer tiro, ou aqueles que queriam participar na guerra mas foram impossibilitados por serem menores de idade e os que participaram e acabaram fuzilados ou deportados para campos de concentração. “São histórias muito diferentes. Algumas acabam de forma trágica e outras de uma maneira cómica. E, lá pelo meio, há histórias completamente kafkianas”, refere o autor de “A Sombra dos Heróis”.

Artigo publicado na edição nº 1987 de 3 de maio, do Jornal Económico

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