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Rob McCargow: “A literacia digital passou a ser obrigatória nas administrações”

O diretor de Inteligência Artificial da consultora PwC United Kingdom defende que as empresas têm um papel a desempenhar no enquadramento do desenvolvimento da inteligência artificial, em vez de ficarem à espera de governos e reguladores, mas que os decisores têm de ter maior conhecimento sobre tecnologia.
7 Dezembro 2021, 17h40

A inteligência artificial é apontada como tendo o potencial para transformar diferentes vertentes da nossa vida, e está já a ser utilizada, sob diversas formas, incluindo em atividades do nosso dia-a-dia. Em entrevista ao Jornal Económico, Rob McCargow, diretor de Inteligência Artificial da consultora PwC United Kingdom, fala sobre o estado da arte daquela que é vista como a mais poderosa ferramenta em gerações e como todos temos de nos adaptar, a começar pela gestão. “A literacia digital nas administrações é, agora, obrigatória”, diz McCargow, que defende que as empresas têm um papel a desempenhar no enquadramento do desenvolvimento da inteligência artificial, em vez de ficarem à espera de governos e reguladores.

Começando pelo princípio, do que falamos quando falamos sobre inteligência artificial? Qual é a melhor definição?

A melhor definição é a de uma tecnologia que faz uma série de coisas: pode sentir, isto é, pode recolher dados; pode pensar, em termos de processamento de dados; pode agir, em termos da ação sobre os insights de dados; mas, criticamente, a diferença é que pode aprender. Tem um ciclo que continuamente lhe permite melhorar e refinar a sua capacidade de resolver problemas. Portanto, essa abordagem para sentir, pensar, agir, aprender é provavelmente a melhor descrição que já ouvi.

A outra maneira de olhar para isto é, claro, para os tipos específicos de tecnologias que se enquadram na família da inteligência artificial. Os mais proeminentes, o machine learning, o deep learning e o processamento de linguagem, são provavelmente os três principais que veremos em aplicação nos negócios.

Qual é o estado da arte da inteligência artificial na influência no nosso dia-a-dia?

Penso que, em particular nos últimos cinco anos, vimos a inteligência artificial a tornar-se comum em muitos aspetos das nossas vidas. A principal área – e não percebemos quão poderoso isto é – é a das nossas vidas como cidadãos e consumidores de bens e serviços, seja no atendimento ao cliente, seja no seu banco. As formas mais poderosas destas tecnologias, porém, são mais ou menos invisíveis aos olhos do cidadão e são essas ferramentas que estão a tomar decisões sobre os seus produtos de serviços financeiros, decidindo se você poderá beneficiar de um empréstimo ou de uma hipoteca, ou ajudando a apoiar o processo de recrutamento para um emprego.

Muitas destas aplicações estão fora do alcance dos olhos dos cidadãos, portanto, as pessoas não percebem exatamente como esta tecnologia já é omnipresente e como está incorporada [em diversas funções].

Foca a sua atividade nas implicações da inteligência artificial sobre as pessoas e, especialmente, sobre os recursos humanos. Considera que a pandemia ed Covid-19 foi um acelerador de processos no domínio do trabalho?

Há duas respostas para isso: penso que tem havido uma aceleração de uma série de tendências que já estavam a ocorrer em torno da automação – ou augmentation, uma palavra mais correta. Trabalhamos com clientes. em muitos sectores. que procuravam inovação, que uma agenda digital com três ou quatro anos e que conseguiram concretizá-la em três ou quatro meses, devido à necessidade de sobrevivência durante a pandemia. [A pandemia] tem sido uma plataforma realmente importante para a inovação e vemos essa aceleração em muitas tendências.

No entanto, também mudou as próprias tendências. Uma área em que vimos uma mudança significativa nas tendências é no emprego, do ponto de vista da força de trabalho e do local de trabalho. Não sei se acontece o mesmo em Portugal, mas no Reino Unido e noutros locais vemos este fenómeno de trabalho híbrido e isso mudou algumas das tendências em torno de algumas iniciativas digitai; tivemos de recuar e voltarmos a focar-nos em torno desta nova forma de trabalhar.

O que também vimos nesta pandemia foi uma mudança no foco em torno das organizações. Sabemos, por exemplo, que a agenda ESG [ambiental, social e governança, na sigla em inglês] está no topo da agenda e a tecnologia e a inteligência artificial desempenham um papel muito profundo nessa agenda. Deixe-me dizer sobre isso, em primeiro lugar, que há um maior escrutínio dos investidores sobre as empresas em relação à forma como gerem a sua força de trabalho; vimos algumas grandes decisões de investimento tomadas com base em perceções de clientes e de organizações em torno do seu foco em coisas como o bem-estar das equipas. Vimos uma mudança na base de poder do empregado; agora, todos perseguem os melhores talentos nos mercados. São as organizações que necessitam de transformar totalmente a sua abordagem sobre como atraem pessoas e como as retêm e, em particular, talentos em tecnologia. Penso que isto mudou muitas das tendências existentes.

Em resumo, acelerou algumas tendências, mas também levou à criação de tendências totalmente novas que não existiam há dois anos.

Como pode uma pequena ou média empresa (PME) pode competir num mundo globalizado, em que é obrigada a disputar talento num mercado aberto, como este em que o teletrabalho se afirmou?

Uma das frases que temos ouvido muito nos últimos meses a da “grande resignação”. Muitos dos estudos que realizámos – e muitos outros que foram feitos – sugerem que até dois terços da força de trabalho pretendem, atualmente, mudar de emprego, e a melhor frase que ouvi para descrever isto é a “grande reorganização”, porque continua a haver contratações, mas os desafios para as pessoas estão a mudar mais rapidamente do que antes.

Acho que este é realmente um momento muito positivo para as pequenas e médias empresas, porque têm agilidade, têm imaginação, têm capacidade de agir com rapidez. E penso que a pandemia também trouxe diferentes prioridades às pessoas nas suas vidas profissionais: querem deslocar-se diariamente? Querem passar o tempo numa mesa todos os dias? Trabalhar apenas para uma grande empresa é tudo o que têm em mente? Portanto, não, acho que há muito que as PME podem fazer e penso que o principal, aqui, é que o melhor talento quer estar alinhado com organizações que têm um propósito corporativo claro; acho que há um grande foco neles e na forma como vivem os seus valores. Por exemplo, tivemos a COP-26 no Reino Unido e as empresas têm liderado em muitos aspetos relacionados com a agenda ESG e Net Zero, à frente dos governos; e os trabalhadores esperam que as promessas ousadas feitas pelas empresas sejam bonafide, sejam reais e estejam a ser concretizadas. Então, se você é uma PME, se puder contar claramente uma história sobre como o seu propósito, a sua abordagem à tecnologia, à inovação, a sua estratégia para os trabalhadores é real e está ligada a resultados reais que beneficiam os membros da equipa, então poderá competir muito bem neste novo mercado.

Acredita que a tecnologia está a sair do departamento de TI para se tornar transversal? Existe essa consciência de que a tecnologia é transversal e que todos terão de compreender as ferramentas?

A literacia digital nas administrações é, agora, obrigatória. Infelizmente, fora das lideranças em tecnologia, o nível de capacidade ainda é muito baixo, o nível de compreensão e de maturidade é muito baixo e isso representa um risco real.

Uma das principais áreas de crescimento na aplicação da inteligência artificial gira em torno das ferramentas para recursos humanos; tem crescido muito durante a pandemia, com a procura de ferramentas para monitorar a produtividade, a segurança, etc. Neste caso, por exemplo, o diretor de Recursos Humanos tem de estar equipado com o entendimento certo, com o nível de conhecimento adequado para ter capacidade para fazer as perguntas difíceis sobre como a ferramenta é construída, com que dados é que aprende, quais são os fatores de risco e quais são todos os outros fatores, para que possa ter a certeza de que a governança é apropriada. E eu passei muito tempo com conselhos de administração e penso que isto deve chegar aos administradores não executivos, também aos presidentes das empresas e não apenas às comissões executivas.

Voltando à pandemia, acha que as empresas olharam para este período como uma oportunidade para começar a usar a inteligência artificial na gestão dos recursos humanos?

Penso que as empresas claramente tiveram preocupações com a produtividade da sua força de trabalho, de forma geral. Houve uma mudança tão significativa na forma como o trabalho é feito, também com a pandemia, e isso levou a diferentes decisões para diferentes empresas. Algumas empresas seguiram o caminho de querer monitorar mais as equipas, ver como trabalham – estou a pensar em ferramentas para medir a quantidade de tempo que gastam em chamadas de vídeo todos os dias, etc. A maneira como estamos a tentar ver isto, e certamente a minha equipa está a fazê-lo, é olhando para o outro lado do espectro, na forma como capacitamos a equipa com tecnologia para entender melhor o seu próprio bem-estar, como equipamos a liderança de nossas organizações com ferramentas apropriadas aporte de dados, que velho mundo não conseguiria. Dou-lhe um exemplo: muitas decisões sobre a sua estratégia de recursos ainda estão a ser tomadas com base em coisas como inquéritos de pessoal ou estudos sobre o nível de comprometimento dos trabalhadores, etc, que são feitos num momento no tempo, sujeitos ao humor do funcionário naquele momento preciso. Agora estamos em posição, usando tecnologia como wearables, dados biométricos, dados de função cognitiva, para capacitar a equipa a compreender-se melhor no local de trabalho e, usando dados altamente anónimos e agregados, para mostrar à liderança da organização aos nossos clientes o efeito no mundo real da equipa a trabalhar desta nova maneira. Como podemos mudar a estratégia de recursos humanos para tornar as equipas menos stressadas, para torná-las mais produtivas e dar-lhes uma experiência de trabalho mais gratificante? Uma nova abordagem, eu acho, deve focar-se no bem-estar e com o bem-estar obtemos melhor produtividade. Se tentar extrair mais produtividade de uma força de trabalho exausta, isso só resultará num caminho, que é cair.

Podemos dizer às pessoas que não precisam de ser técnicos para trabalhar com inteligência artificial?

Exatamente. Gosto de pensar sobre os tecnólogos modernos como tendo um conhecimento que lhes permite examinar a tecnologia, questionar onde há risco, ou questões relacionadas com a regulamentação, ou aspetos relacionados com os recursos humanos ou as pessoas, ou a forma como é comunicada aos clientes. Há muitas maneiras de ter uma carreira em tecnologia, precisamos apenas abrir os portões e criar essa cadeia de fornecimento.

Quais considera serem os principais riscos relacionadas com a inteligência artificial, no atual nível de desenvolvimento?

Classificaria desta forma: já existem sinais muito claros de que certas aplicações de inteligência artificial causaram danos, levaram à discriminação, conduziram a resultados injustos para membros da força de trabalho ou membros da sociedade em geral. Alguns deles enquadram-se na área da justeza e têm a ver com problema que relaciona a inteligência artificial com o viés algorítmico e esse é um problema real, hoje.

Outra questão é o que chamamos de explicabilidade e, neste contexto, quero dizer que as formas mais poderosas de inteligência artificial, muitas vezes, podem agir como uma caixa preta. Isto é, fornecerão um resultado ou uma recomendação, mas é impossível percebermos como a decisão foi tomada e, portanto, não a podemos escrutinar e entender. E como a inteligência artificial é aplicada a casos de uso com consequências cada vez mais importantes – e estou a pensar em diagnósticos médicos, em decisões sobre serviços financeiros, produtos, até na indústria de defesa –, temos de perceber como uma decisão foi tomada, para podermos responsabilizar e certificarmo-nos de que a governança apropriada está em vigor.

Há, também, problemas de segurança e de cibersegurança; quão robusta é sua tecnologia para evitar ataques cibernéticos?

Existem muitos problemas do mundo real [relacionados com inteligência artificial] que, penso, devem constar no registo de risco das empresas, ao invés de, talvez como acontecia alguns anos atrás, em que esta tecnologia era vista como secundária, de nicho. Esta tecnologia agora está disponível por um preço muito, na nuvem, e, portanto, é essencial agora que essas salvaguardas, checks and balances [verificações e equilíbrios] estejam instaladas para que as empresas façam isto bem.

Como poderemos resolver o problema da falta de escrutínio em inteligência artificial, estando do lado de fora das decisões?

Temos, por exemplo, as novas diretrizes da Comissão Europeia em torno destas questões, em que diferentes casos de uso são categorizados por níveis de risco, e isso traz algum escrutínio, supervisão e proteção regulatória, dependendo do dano potencial que possa causar. Num extremo do espectro temos, por exemplo, software de reconhecimento facial de domínio público, no outro extremo está o algoritmo que lhe recomenda filmes, em que, claramente, há um baixo nível de dano. Penso que já existem desenvolvimentos muito avançados na União Europeia, mas penso, também, que compete às empresas adaptarem os seus quadros de governação e a sua abordagem para compreender os próprios riscos; não podem, simplesmente, esperar que os reguladores estabeleçam os padrões.

Também tem havido muito trabalho sobre os princípios éticos da inteligência artificial, cerca de 200 princípios éticos publicados por grandes empresas de software, por organizações da sociedade civil e instituições de caridade; a chave, aqui, é que podem ser operacionalizados. É muito bom dizer que a inteligência artificial deve ser justa, transparente e boa para a sociedade, mas se você está a tentar implementar um sistema, como é que realmente faz isso, na prática? Por vez, vezes é aí que os princípios éticos precisam de detalhes mais granulares, para que se tornem úteis.

Todos vimos filmes de ficção científica em que a inteligência artificial se torna uma ameaça. Qual o caminho que devemos percorrer para evitar as ameaças, no futuro?

Bem, não sou um futurista, mas para mim a questão é termos a certeza, os que estamos em posições de poder, agora, em tecnologia, em papéis de liderança, em governos e reguladores, de que não deixamos pedra sobre pedra, de que fizemos todas as perguntas necessárias para garantir que a tecnologia se desenvolva bem, de modo que em dez, 15 ou 20 anos não tenhamos mais arrependimentos. É claro que haverá alguns desenvolvimentos que serão negativos, mas temos que manter o foco no bem que a tecnologia pode trazer. Se acertarmos, este poderia ser um dos multiplicadores mais poderosos numa geração, tornando a vida melhor, mais saudável, criando maior riqueza e removendo riscos, e, potencialmente, sendo aplicado para resolver os maiores problemas da sociedade. Isto é que tem de permanecer como a nossa Estrela do Norte, mas não vai acontecer por acaso, temos de realmente pensar muito bem e responsabilizarmo-nos pelo caminho que percorrermos.

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