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Teresa Fragoso: “A igualdade tem de fazer parte das principais atividades dos serviços públicos”

Nos últimos 40 anos, tem sido percorrido um longo caminho no sentido da paridade entre mulheres e homens. Em entrevista ao Jornal Económico, a presidente da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género explica o que tem sido feito para acelerar essa mudança e o que falta fazer.
  • Tiago Lopes Fernandez
8 Março 2018, 07h25

Nos últimos 40 anos, tem sido percorrido um longo caminho no sentido da paridade entre mulheres e homens, com reflexos na capacidade de intervenção na vida pública e no mercado de trabalho. Em entrevista ao Jornal Económico, a presidente da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, Teresa Fragoso, explica o que tem sido feito para acelerar essa mudança e o que falta fazer. Por exemplo, o combate ao estereotipo de género na educação. “A visão estereotipada do que significa pertencer a um dos sexos tende a condicionar os comportamentos e as opções de mulheres e de homens ao longo de toda a sua vida, como se a diferenciação biológica determinasse as características pessoais”, diz.

De que forma é que os orçamentos com impacto de género podem esbater as desigualdades entre homens e mulheres na sociedade portuguesa? 

Os orçamentos sensíveis ao género baseiam-se na premissa de que as decisões orçamentais não são neutras no que se refere ao seu impacto em homens e em mulheres, dadas as diferentes condições de vida de uns e de outras numa dada sociedade e, portanto, as suas diferentes necessidades, os seus diferentes estatutos e as suas diferentes formas e níveis de acesso aos recursos.

Pretende-se, assim, que as políticas orçamentais sejam desenhadas e dirigidas especificamente às necessidades e características de mulheres e de homens, evitando assim desvios que se traduzem em perdas de eficiência.

Se um orçamento tiver em conta as diferenças entre mulheres e homens, e se na sua elaboração forem tomadas as medidas que contrariem as desigualdades associadas a essas diferenças, é de esperar que o orçamento tenha um impacto positivo na construção da igualdade.

 

Como é que se aplicam na prática? Pode indicar alguns exemplos?

É preciso referir, desde logo, que os orçamentos sensíveis ao género não significam orçamentos separados para as mulheres pois a abordagem de género é, por definição, relacional – diz respeito às (des)igualdades entre homens e mulheres.

Este tipo de iniciativas, que têm vindo a ser desenvolvidas em diversos países, tem assumido características diferentes, não havendo um modelo único para a sua aplicação.

Com efeito, podem aplicar-se a linhas orçamentais específicas ou a programas orçamentais, ou podem começar por um determinado departamento ou apenas num ministério. Podem igualmente ser aplicados ao nível local, nos orçamentos das autarquias.

Na Suécia, é publicado anualmente um anexo ao projeto de orçamento de Estado, sobre Igualdade Económica entre mulheres e homens, que mostra a distribuição sexual de recursos económicos. Este anexo é publicado desde 1988, e o seu objetivo é mostrar como as desigualdades entre mulheres e homens têm expressão em termos económicos, mas também como os sistemas de segurança social reduzem as desigualdades de rendimentos. Ao analisar a situação económica de mulheres e homens, inclui informação sobre as diferenças entre mulheres e homens na educação, no trabalho remunerado, nos salários, no trabalho doméstico não pago e nos rendimentos de capitais.

Um exemplo mais específico vem da Islândia. Em 2015, aquando de alterações no sistema de tributação dos rendimentos, foi abolida a medida que previa que o parceiro com maior rendimento dentro de um casal beneficiava do crédito tributário não utilizado do parceiro de rendimento mais baixo. Inicialmente, a Comissão de Orçamento propôs a continuação da anterior medida, que beneficiava principalmente os homens, pois eles são o parceiro que ganha mais em 75% dos casamentos. No entanto, devido à introdução da estratégia de orçamentos sensíveis ao género, foi apontado à Comissão que isso significaria que os homens receberiam benefícios fiscais com base no trabalho e nos salários das mulheres, o que faria aumentar o seu rendimento disponível, e o gender gap de rendimento. Graças a esta informação, a proposta inicial da comissão de orçamento foi alterada.

Na Suíça, um estudo publicado em 1996, teve por objetivo determinar se os cortes orçamentais tinham um impacto mais negativo sobre as mulheres do que sobre os homens, tendo procedido à comparação das tendências em matéria de despesas públicas durante um período de dez anos. A análise seguiu três critérios: os benefícios retirados das despesas públicas, classificando as despesas segundo o seu impacto esperado sobre mulheres e homens; o impacto diferencial sobre o emprego das mulheres e dos homens, nomeadamente sobre o emprego na função pública e sobre o emprego relacionado com os contratos de fornecimento ao Estado; e o impacto sobre o trabalho não remunerado. O estudo revelou uma distribuição muito desigual das despesas públicas entre mulheres e homens, a diversos níveis.

Em Espanha, as orientações para a elaboração do Orçamento do Estado, estabelecem que cada departamento ministerial, ao enviar aos serviços centrais do orçamento os seus respetivos projetos de orçamento, deverão fazê-los acompanhar de um relatório que analise o seu impacto de género. O anteprojeto da Lei Geral do Orçamento do Estado é acompanhado por um Relatório de Impacto de Género, elaborado a partir das informações fornecidas pelos departamentos ministeriais.

 

Considera que os orçamentos do Estado, em Portugal, têm sido neutros no que se refere ao seu impacto em homens e em mulheres nos últimos anos? Porquê?

Não existem estudos que objetivamente, e em termos globais, nos possam dar esta resposta. Embora o facto de o orçamento de Estado ser orientado para mulheres e homens, indiscriminadamente, sem distinguir entre medidas dirigidas a mulheres ou a homens, possa ser invocado para justificar a sua neutralidade, o conhecimento que temos das diferenças que existem nas condições de participação das mulheres na vida social faz-nos deduzir que o impacto será necessariamente diferenciado.

A título de exemplo, sabemos o impacto, sobre homens e mulheres, de algumas medidas específicas, como a atribuição de subsídios por licenças parentais e outros subsídios, ou a atribuição de pensões. E as diferenças que encontramos permitem-nos avaliar como a vida de mulheres e de homens é marcada por características que fazem com que as medidas de política aparentemente neutras se vão repercutir diferentemente sobre umas e outros.

Reconhecendo a importância de implementar esta estratégia, o atual Governo, a título de iniciativa precursora, incluiu no orçamento do Estado para 2016, um artigo prevendo que cada ministério deveria inscrever no respetivo orçamento as verbas referentes à política de prevenção da violência doméstica, proteção e assistência das suas vítimas, dando conhecimento das mesmas, bem como da sua execução, ao membro do Governo responsável pela área da igualdade. Um artigo com o mesmo teor foi incluído no orçamento do Estado para 2017.

Um novo passo foi dado no Orçamento de Estado para 2018, em que foi incluído um artigo que prevê o envio, pelos departamentos governamentais, ao membro do Governo responsável pela área da cidadania e da igualdade um relatório estratégico referente à análise de género nas respetivas políticas públicas setoriais e a sua tradução na construção de orçamentos com impacto de género; os relatórios referidos no número anterior constituem a base para a elaboração de um relatório pela CIG. Prevê ainda que até ao final de 2018, o Governo apresenta à Assembleia da República uma proposta de lei que institui um relatório anual sobre a implementação de orçamentos com impacto de género.

 

De que forma é que se pode alterar o quadro de como são tomadas as decisões orçamentais para incorporar esta sensibilidade?

Há que ter em conta que esta estratégia significa a junção de dois tipos de conhecimentos e de informações que, geralmente, não se analisam em conjunto mas sim separadamente: as desigualdades entre mulheres e homens e as finanças públicas e programas do sector estatal. Um dos resultados dos orçamentos sensíveis ao género é a valorização política da problemática da igualdade entre mulheres e homens, deixando esta de estar associada apenas ao domínio das questões sociais para se situar, também, no âmbito da macroeconomia.

Assim, uma condição prévia dos orçamentos sensíveis ao género é a assunção do compromisso político pela igualdade entre mulheres e homens, expresso em objetivos claros e em metas realizáveis. Para que a integração da perspetiva de género nos processos orçamentais seja uma realidade, é necessário que a igualdade entre mulheres e homens não seja encarada como uma atividade suplementar dos serviços públicos mas que integre os objetivos dos serviços e, desse modo, faça parte das suas principais atividades.

Por outro lado, é evidente a necessidade de envolver agentes da área orçamental, que não estão, frequentemente, sensibilizados ou capacitados para trabalhar as questões da igualdade de género. Com efeito, a experiência e compreensão das questões relativas às relações sociais e às (des)igualdades entre mulheres e homens constitui um requisito essencial das equipas que, em cada organismo público, têm a responsabilidade operacional dos orçamentos. Isto implica que a integração da perspetiva de género no processo orçamental não deve ser realizada por elementos exteriores aos organismos públicos, mas sim por pessoas dos serviços com competências e conhecimentos no domínio da igualdade de género. É crucial que as equipas responsáveis pelos processos orçamentais compreendam como se constroem as relações entre as mulheres e os homens, como nascem as desigualdades entre umas e outros, como surgem as “diferenças” que as justificam e como estas se perpetuam na sociedade, em geral, e nas instituições, em particular. Esse conhecimento é imprescindível para que haja, nos serviços e nas pessoas que neles trabalham, a consciência da necessidade de corrigir as desigualdades de género. Os conhecimentos e competências em matéria de igualdade entre mulheres e homens são, pois, uma condição essencial para que os serviços reúnam os meios necessários para a integração sistemática da perspetiva de género no processo orçamental.

 

Como é que avalia a participação feminina na esfera política, económica e empresarial em Portugal? O poder está realmente aberto para definir estratégias de combate à desigualdade?

Os esforços que têm sido prosseguidos nos últimos 40 anos para promover a igualdade entre mulheres e homens resultaram em progressos sensíveis da situação das mulheres, em diversos domínios sociais, para o que contribuiu, certamente, a melhoria da qualificação académica das mulheres (atualmente, quase dois terços (61%) da população portuguesa com educação superior são mulheres).

Na esfera política, lembremos que no primeiro Parlamento democrático eleito, em 1975, a representação de mulheres era de apenas 8,9%, e de 1,9% no primeiro Governo. Apesar da melhoria no estatuto das mulheres que, ao longo dos anos, se foi verificando em outros domínios da vida social, a política continuou a ser uma atividade predominantemente masculina, até à aprovação da chamada Lei da Paridade, em 2006. Esta Lei, que impõe que as listas de candidaturas apresentadas sejam compostas de modo a promover a paridade entre homens e mulheres, entendendo-se por paridade, nos termos da lei, a representação mínima de 33,3% de cada um dos sexos nas listas, tornou possível alcançar os valores atuais de 33% de mulheres na Assembleia da República eleita em 2015, e de 38,1% de mulheres entre os deputados portugueses eleitos para o Parlamento Europeu. O atual Governo (formado em 2015) conta com uma representação de 30,5% de mulheres.

Quanto à esfera económica e empresarial, é conhecido que a participação das portuguesas no mercado de trabalho, particularmente no trabalho a tempo completo, tem dos valores mais elevadas da União Europeia. Sublinha-se também que o seu melhor estatuto académico faz com que sejam altamente maioritárias em profissões ligadas às atividades intelectuais e científicas (60%).

Porém, o mercado de trabalho continua a caracterizar-se pela segregação entre mulheres e homens, quer no que se refere aos ramos de atividade ou profissões (segregação horizontal) quer em termos de hierarquia profissional (segregação vertical). E quando se trata de exercer o poder económico, no domínio empresarial, ao mais alto nível, a presença de mulheres é diminuta – entre os membros dos conselhos de administração das empresas do PSI 20 existiam, em fevereiro de 2017, apenas 15,5% de mulheres, registando no entanto uma evolução sensível desde 2008, ano em que eram apenas 3%.

O empenho do Governo em mudar esta situação conduziu à recente aprovação de uma lei que estabelece limiares para a proporção de pessoas de cada sexo nos órgãos de administração e de fiscalização das entidades do setor público empresarial – 33,3 %, a partir de 1 de janeiro de 2018 – e das empresas cotadas em bolsa – 20 %, a partir da primeira assembleia geral eletiva após 1 de janeiro de 2018, e 33,3 %, a partir da primeira assembleia geral eletiva após 1 de janeiro de 2020.

 

As políticas públicas adoptadas no combate à desigualdade esbarram muitas vezes na sua concretização prática. O que é que falha? 

Em grande medida, falha porque a participação de mulheres e homens em todas as esferas da vida social – família, trabalho, participação cívica e política, desporto, tempos livres – continua marcada por estereótipos de género, que são muito penalizadores das mulheres.

A visão estereotipada do que significa pertencer a um dos sexos tende a condicionar os comportamentos e as opções de mulheres e de homens ao longo de toda a sua vida, como se a diferenciação biológica determinasse as características pessoais, e isto abarcando todas as vertentes da sua vivência: as escolhas escolares e profissionais, a participação cívica ou política, as responsabilidades familiares, e tantas outras decisões de índole pessoal ou social.

Esta visão limitada e condicionada das possibilidades de escolha tem consequências negativas para as pessoas, mulheres ou homens, a nível individual, e para a sociedade, ao desperdiçar talentos tantas vezes frustrados por não corresponderem ao que é esperado do sexo de quem os possui.

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